1. É certo e sabido que a nossa classe política não é conhecida por conseguir antecipar problemas. Mesmo quando os mesmos são tão evidentes que estão à frente do nariz. Desvalorizar, inventar fantasmas, perseguições políticas e adiar as soluções óbvias são as táticas habituais — independentemente do partido político que estiver em causa. Até que ‘bombas’ como o caso Sócrates e Manuel Pinho rebentam ‘no colo’ do regime e aí os nossos políticos começam a fugir como o ‘diabo da cruz’ daqueles que antes veneravam como amigos, seguidores e correligionários. Não é um espectáculo bonito de se ver mas, acima de tudo, é algo que revela muito sobre o nível da degradação a que chegou o regime sem que nenhum dos partidos do poder (PS, PSD e CDS) sinta realmente vontade de reformar o sistema.

Vem isto a propósito da necessidade de pensar em novas medidas contra a corrupção que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa suscitou — e bem — na entrevista que dá esta segunda-feira ao Público e à Rádio Renascença. Marcelo é bastante claro: “os partidos devem actuar” já e preparar nova legislação de prevenção e de combate contra a corrupção sem esperar pela conclusão dos processos judiciais em curso. Usando muito bem o Pacto de Justiça (que o próprio Presidente promoveu) assinado entre os diferentes operadores judiciários em janeiro de 2018, o Presidente diz que é “preciso ir mais além” e indica mesmo as duas áreas onde deve ser feito uma aposta:

  • Prevenção
  • Acelerar o tempo judicial

2. Vamos por partes. Comecemos pela prevenção.

Todo os processos relevantes de criminalidade económico-financeira têm um ponto em comum: a promiscuidade entre o poder político e o poder económico e a captura do interesse público por grupos económicos. E aqui a produção legislativa ocupa um papel central na forma como os grupos económicos conseguem construir uma série de direitos adquiridos que oneram anualmente o Orçamento de Estado e/ou os consumidores em sectores como as parcerias público-privadas ou a energia. Produção legislativa essa que, desde há muito, se rege por uma espécie de regime de outsourcing em que, na realidade, o papel do legislador é desempenhado pelos principais escritórios de advogados e pelas consultoras financeiras. São estes que fazem os textos das lei que acabam por ser aprovados pelo Governo ou propostos pelo Poder Executivo ao Parlamento.

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Casos de promiscuidade e conflitos de interesse entre ministros, secretários e assessores que tomaram ou aconselharam decisões centrais sobre áreas que tutelaram, sendo posteriormente contratados por empresas dessas mesmas áreas existem em todos os Governos do PS, PSD e CDS desde o 25 de abril. O mesmo se aplica a deputados que não estão em exclusividade de funções e que trabalham exatamente nas mesmas áreas sobre as quais são legisladores ativos. Todas estas situações são tão banais e corriqueiras que todos os envolvidos certamente que alegarão que se trata da norma social, logo não censurável. Mas é claramente, totalmente e obviamente censurável. E, mais do que isso, está na origem da verdadeira subjugação do poder político ao poder económico.

Portanto, aqui, e seguindo a indicação do Presidente da República, há muito para prevenir. Tal como o problema é óbvio, as soluções também não são complexas, sendo que um regime de incompatibilidades claro e muito mais abrangente do que o atual é um imperativo.

Ex-ministros como Joaquim Ferreira do Amaral, Jorge Coelho ou Pina Moura não deixaram de respeitar o prazo de três anos legais que os impedia de trabalharem em empresas que atuavam nas respetivas áreas que tinha tutelado mas os seus casos são um perfeito exemplo de incompatibilidade que a lei devia prever e impedir. Tal como as mesmas regras que se aplicam aos titulares de cargos políticos, deviam ser alargadas aos titulares aos assessores e adjuntos de gabinetes governamentais. Basta apenas ver os exemplos que, independentemente das eventuais matérias criminais, foram descobertos pela investigação do caso EDP. Já os deputados, por seu lado, deviam ser obrigados a exercer as suas funções em regime de exclusividade ou ser impedidos de ter atividade profissional nas áreas em que atuam como legisladores.

Por último, falemos dos escritórios de advogados. O número de situações de conflitos de interesse graves que têm sido denunciadas nos últimos anos pela comunicação social, têm merecido o silêncio e a complacência da Ordem dos Advogados que, como qualquer organização de uma profissão liberal, tem poderes disciplinares. Desde a contratação de escritórios de advogados por parte do poder executivo para proporem medidas legislativas em sectores onde também representam as principais empresas dos sectores, passando pelo advogado que é convidado para ir para o Governo e regressa ao escritório para trabalhar na mesma área onde exerceu funções de governante — tudo isto já foi noticiado em casos concretos que a Ordem dos Advogados ignorou completamente. A Ordem, que tem um novo bastonário desde o ano passado, tem aqui um papel de prevenção, de compliance (uma área de negócio em que ironicamente os grandes escritórios descobriram uma nova ‘mina de ouro’), além de disciplinar para quem prevarica, que é uma excelente oportunidade para prestigiar a profissão de advogado.

3. Segunda área escolhida por Marcelo: acelerar o tempo judicial. Aqui temos um caso concreto do presente que acaba por ser um exemplo paradigmático de muitos processos judiciais complexos da criminalidade económico-financeira: o processo Face Oculta. Trata-se de um processo que se iniciou em abril de 2009, teve acusação a 27 de outubro de 2010, um julgamento de dois anos e três meses, uma fase de recurso no Tribunal da Relação do Porto que demorou dois anos e sete meses e a subida para o Tribunal Constitucional que foi concretizada um ano depois da Relação ter recusado a maior parte dos recursos. Resumindo e concluindo: desde a abertura do inquérito já passaram 9 anos e a conclusão dos autos está longe do fim. A importância social do processo Face Oculta obriga a que este tempo de decisão seja uma aberração em termos de justiça — e entenda-se por “justiça” uma perceção da própria sociedade em que as regras são para serem cumpridas e os prevaricadores duramente sancionados.

Aqui também há muito para fazer, aprofundando a reforma penal cirúrgica que foi realizada pela ex-ministra Paula Teixeira da Cruz para diminuir as manobras dilatórias que são apresentadas pelas defesas, restringindo a possibilidade de utilização dos recursos, reclamações, nulidades, etc., entre outras figuras jurídicas que são utilizadas até à exaustão pelos advogados com clientes que tenham recursos financeiros para sustentar essa advocacia.

Contudo, é “preciso ir mais além”, como diz o Presidente. E é altura de refletirmos sobre a eventual necessidade de medidas penais que são utilizadas no Brasil, nos Estados Unidos, Canadá ou Grã-Bretanha e que possibilitam a prisão do arguido para cumprimento da sentença de prisão antes de todos os recursos terem esgotado. Tal só acontece quando a matéria de facto fica encerrada e a sua análise já não é possível, restrigindo-se os recursos para tribunais superiores a matérias de direito.

Este princípio deve merecer reflexão em Portugal. Até porque a nossa lei processual penal já restringe os recursos que podem subir ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a casos com penas superiores a 8 anos, sendo que a matéria de facto não pode ser analisada pelo STJ, mas sim apenas pela primeira e segunda instâncias. Estou convicto que o efeito dissuasor que uma medida destas teria (como teve noutros países) seria um passo muito relevante num combate mais eficaz contra a corrupção.

4. Uma justiça mais célere na área da criminalidade económico-financeira também implica ter uma justiça mais eficiente. E aqui o caminho passa não só por mais meios mas acima de tudo pela construção de um sistema coerente e lógico.

O Ministério Público (MP) apostou na especialização ainda nos anos 90, no tempo do procurador-geral Cunha Rodrigues. Foi devido a à construção desse saber mais especializado, que foi sendo aperfeiçoado com a criação dos departamentos de investigação e ação penal e, mais tarde, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) no final dos anos 90, que o MP tem conseguido ir mais além na investigação deste tipo de criminalidade.

O DCIAP foi desenhado para ser uma espécie de cúpula do melhor que o MP tem em termos de procuradores especializados na criminalidade económico-financeira. Na prática, tratam-se de magistrados que apenas trabalham neste tipo de criminalidade. Logo, e para dar alguma coerência ao sistema, foi criado, ao mesmo tempo que o DCIAP, o Tribunal Central de Instrução Criminal para tratar essencialmente da instrução de casos daquele departamento do MP. Isto é, os juízes que trabalham no Tribunal Central são tão especializados quanto os do MP. Mas o sistema ficou incompleto.

E ficou incompleto porquê? Porque é bastante comum se verificar uma espécie de choque do saber especializado de departamentos do MP como os do DCIAP com o saber generalista dos tribunais comuns.

Nestes últimos, e como livro “Com a devida vénia — Diários dos tribunais” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2018) recentemente atestava, há juízes que recusam estudar os processos para não ‘contaminarem’ a sua neutralidade. Julgar casos como os do Face Oculta, BPN, BPP, Operação Marquês ou Universo Espírito Santo sem estudar previamente os respectivos autos, é o mesmo que pré-determinar o arquivamento dos autos sem apelo nem agravo.

Por isso mesmo, é necessário estudar novamente a hipótese de completar toda a arquitetura do sistema, criando uma continuidade do Tribunal Central de Instrução Criminal. Isto é, seria uma espécie de Audiência Nacional espanhola que congrega um tribunal de instrução mas também um tribunal de julgamento. É uma medida que ajudaria os juízes a especializarem-se e a ter um know-how semelhante ao do MP.

Mas a frase-chave de Marcelo Rebelo de Sousa aqui é “ir mais além”, o que implica voltarmos a discutir duas medidas fundamentais para lutar com eficácia contra a corrupção:

  • A criminalização do enriquecimento injustificado ou ilícito
  • A colaboração premiada

Tratam-se de duas medidas que não tiveram a unanimidade entre os operadores judiciários e acabaram por cair no acordo do Pacto de Justiça. Enquanto que a primeira teve mesmo um chumbo do Tribunal Constitucional, por alegadamente violar os direitos de defesa contidos na Constituição, já a segunda foi debatida mas a polémica levantada abafou completamente as virtualidades daquela duas proposta.

Será que é desta que vamos debater estas duas ideias focados na eficácia das medidas — e não em preconceitos jurídicos?