O PS colocou-se nas mãos do Chega. É irónico mas está a acontecer. Durante anos o PS insuflou o Chega. Acreditavam os socialistas que Ventura tinha a personalidade e o discurso qb para ir corroendo eleitoralmente o PSD. Na verdade resultou. À medida que o Chega crescia, os socialistas, devidamente acolitados pela demais esquerda e também por alguma direita, criavam o tabu das linhas vermelhas. Todos os dias o líder do PSD tinha de garantir que nunca se aliaria ao Chega por palavras, actos ou omissões. Montenegro, qual penitente, afiançava que “não é não” e logo tinha de repetir outra vez porque o não nunca parecia suficientemente não.

Tudo isto parecia confirmar o brilhantismo da táctica dos socialistas. O que estes estranhamente nunca parecem ter antecipado é que o Chega se podia vir a tornar um problema para eles, socialistas. Mas é isso que está a acontecer agora. Pior, para desconcerto dos socialistas, a eles não lhes basta dizer “não é não” como exigiam a Montenegro porque muito prosaicamente o que Pedro Nuno Santos diga não conta para nada: Ventura decide se vota ou não ao lado do PS, o embaraço esse fica por conta dos socialistas. O “não é não” que os socialistas exigiam a Montenegro deu lugar a um embaraçoso “sim é sim”  com que Ventura lhes acena de cada vez que PS e Chega votam conjuntamente.

A táctica do PS em relação ao Chega só funcionava se e quando o PS fosse governo. Mas tornar-se-ia inevitavelmente um problema com o PS na oposição. Mesmo assim seria um problema com que os socialistas conseguiriam lidar caso o Chega não se tivesse tornado decisivo na aritmética da oposição: o Chega cresceu muito mais do que aquilo que os tácticos socialistas esperavam, ao mesmo tempo que a esquerda perdeu muito mais votos do que alguma vez pensou. Resultado, com um Governo assente numa escassa maioria, o Chega tem um grupo parlamentar que, somado ao do PS, pode chumbar ou aprovar medidas. E é isso que está a fazer. Para combater o Governo mas também para desgastar o PS.

É precisamente esse embaraço que transparece no artigo que Alexandra Leitão, assina esta semana no Expresso. Numa espécie de exercício didáctico para distraídos, a líder parlamentar do PS propõe-se analisar “O papel da oposição no regime democrático” “no plano conceptual, tendo em conta o nosso sistema de governo, os poderes cometidos ao Governo e à Assembleia da República (AR) e o respetivo enquadramento constitucional.”

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Alexandra Leitão desperdiça milhares de carateres a explicar o que é incontestável: “Não é aceitável e é mesmo antidemocrático impor a passividade das oposições em nome da governabilidade, (…) É verdade que em Parlamentos muito fragmentados, nos quais o Governo tem uma maioria muito escassa (como é o caso atualmente em Portugal), isto pode dificultar a governabilidade e a estabilidade do sistema. Mas é isso que resulta da vontade popular democraticamente expressa em eleições” sem nunca chegar àquilo que naturalmente a preocupa como líder socialista (e se não preocupa é melhor então que os socialistas se preocupem com Alexandra Leitão): centrado na retórica do “não é não” que exigiam a Montenegro, o PS não antecipou que um dia poderia ouvir André Ventura a dizer “sim” a seu lado. O Chega está a desgastar o PS ao impor à oposição uma dinâmica com que os socialistas não contavam. As linhas vermelhas que o PS trouxe para cena política com a intenção de cercar o PSD transformaram-se agora numa amalgama gelatinosa que se cola aos socialistas e de que estes não sabem como se desembaraçar.

P.S. Foi arquivado, a pedido do Ministério Público espanhol, um processo contra a cantora Shakira por fuga ao fisco. O enfrentamento entre Shakira e o fisco espanhol é longo, com vários processos e diferentes desfechos.  Mas Shakira, tal como o futebolista Xabi Alonso, foram dos raros a enfrentar o que tem sido a forma autoritária, para não dizer predatória, de actuação do fisco em Espanha: avança com acusações de fraude fiscal, pede penas de prisão e indemnizações milionárias, e os acusados, entre os  quais se contou Cristiano Ronaldo, acabam a pactuar porque têm muito dinheiro, vidas profissionais que não são compatíveis com as andanças judiciárias e porque sabem que qualquer contestação leva a novos processos, como aconteceu com Xavi Alonso  e também com Shakira. Enfrentar o modo de actuação das administrações fiscais implica riscos que nem todos querem ou podem correr. Até falar sobre o assunto comporta os seus riscos, como se constata quando se conhecem as dificuldades que o realizador Alejo Moreno teve para exibir o documentário ‘Hechos probados’ que conta a história de Agapito Garcia, um empresário galego que foi considerado o maior devedor dos fisco espanhol e que travou uma luta de décadas com a máquina fiscal. Vale a pena ver. Um dia vamos perguntar: como foi possível?