“’Os comunistas’ levaram o campo da minha infância. E depois?” é o título da crónica de Ana Sá Lopes na última página do Público de 2 de abril de 2023.

Vou procurar responder à sua pergunta.

Ana Sá Lopes conta como “o campo imenso” dos seus avós, em Viana do Castelo, foi expropriado pela Câmara Municipal para construir um pavilhão gimnodesportivo.

Do seu ponto de vista, havia um conflito de direitos, o direito ao desporto de uma comunidade e o direito dos seus avós à propriedade, conflito de que se lembra agora quando alguém invoca o direito de propriedade para se opor às medidas de António Costa sobre habitação, já que Ana Sá Lopes não tem dúvidas sobre a justeza de ter havido “tantos campos por esse país fora expropriados em nome de bens maiores como auto-estradas, estradas, centros de saúde, hospitais, escolhas, pavilhões gimnodesportivos”, concluindo que o direito a uma habitação acessível também deveria estar no “interesse público” subjacente ao direito à expropriação.

O conflito de diferentes interesses públicos – e o direito à propriedade privada é um interesse público, para além de ser um direito humano consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu número 17 – não é uma matéria nova e por isso podemos olhar para a forma como se resolvem este tipo de conflitos.

Para fugir aos conflitos com o direito de propriedade, uso o exemplo da forma como a Directiva Habitats, que promove a conservação dos valores naturais dentro da União Europeia, define o processo pelo qual se faz a avaliação do peso relativo de interesses públicos – que inclui os interesses socio-económicos – quando um projecto ou acção implica o risco de afectação significativa de valores naturais protegidos.

Exige uma avaliação prévia, para ponderar a dimensão do risco de afectação, exige que se demonstre que os objectivos de que decorre a acção ou projecto não podem ser obtidos sem o sacrifício do valor natural em causa, exige que se demonstre que não há alternativa para se obter o interesse público em causa e exige que se demonstre que esse interesse público justifica a derrogação do interesse público de conservação da biodiversidade.

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Voltemos então ao campo da infância de Ana Sá Lopes.

A Câmara de Viana do Castelo decidiu expropriar “um campo de milho imenso” para fazer um gimnodesportivo (não vou discutir, por me faltar informação, se a indemnização foi justa, ou não).

Que valores se perderam?

A destruição de solos agrícolas de elevada produtividade e infraestuturados para permitir o regadio e a amputação de uma unidade económica produtiva, rentável e criadora de riqueza.

O mesmo Estado que considerou como interesse público destruir este solo e esta unidade económica já tinha produzido legislação que protege estes solos (a câmara só poderia construir nesses solos através de uma excepção que depende do interesse público da intervenção e da ausência de alternativas) e, uns quilómetros ao lado, em Estorãos, gastou rios de dinheiro para tentar fazer emparcelamento agrícola que permitisse obter o que ali havia: unidades produtivas agrícolas de dimensão adequada para responder à modernização agrícola que estava a ocorrer.

Para quê?

Para fazer um gimnodesportivo que pode ser feito em qualquer sítio, incluindo em terrenos que nessa altura já estariam num acelerado processo de abandono, de baixa capacidade produtiva.

Por que razão decidiu que era ali que iria fazer o gimnodesportivo?

Não faço ideia, não conheço o processo concreto, o que sei, de ter visto muitos projectos destes, é que provavelmente era a solução mais simples (um terreno plano e de um só proprietário) e provavelmente a que garantia a execução da obra mais rapidamente, respeitando eventuais prazos de candidatura a fundos comunitários e alinhamento com o calendário eleitoral.

Isto é, mais do que uma verdadeira ponderação do conflito de interesses públicos, tratou-se de invocar o interesse público para garantir que o interesse eleitoral dos decisores se sobrepunha ao direito de propriedade.

Uma das tristes heranças de Cavaco Silva, que persiste e se aprofundou de forma tão marcada que ainda hoje é apenas essa a tónica de Marcelo Rebelo de Sousa e da generalidade da imprensa na avaliação do PPR, é a prevalência da preocupação com a taxa de execução dos fundos comunitários sobre a preocupação com o verdadeiro retorno social dos projectos (value for Money, dizem os camones).

Olhemos agora para a hipótese de ter verdadeiro respeito pela propriedade privada, o que obrigaria a Câmara (o Estado) a procurar encontrar no mercado outros terrenos para o gimnodesportivo, deixando o campo imenso da infância de Ana Sá Lopes nas mãos dos seus avós.

A actividade produtiva teria continuado a produzir riqueza (seguramente muito mais que o gimnodesportivo) para a sua família, mas também para a sociedade – a produção de alimentos a preços acessíveis é também de interesse público –, com o tempo, provavelmente, a manter-se a produção ter-se-ia evoluído para a produção de leite ou de vinha (hoje rendem mais que o milho).

No entanto, o mais natural, é que a proximidade do centro urbano gerasse uma pressão urbana a que era impossível contrapor uma actividade agrícola precária, mesmo nas condições excelentes da situação descrita e, das duas uma: 1) a Câmara acabava por integrar o campo na malha urbana sob a forma de parque ou jardim, visto ter as condições ideais para isso e permitir salvaguardar o solo agrícola; 2) a Câmara acabava a viabilizar a construção no local, gerando mais riqueza para a família de Ana Sá Lopes e muito mais habitações a preços acessíveis, considerando que isso correspondia a um interesse público maior que a salvaguarda do solo agrícola.

Resumindo e respondendo à pergunta de Ana Sá Lopes, “e depois?”, o que se pode concluir é que, em qualquer caso, depois ficámos todos mais pobres com a falta de respeito do Estado pela propriedade privada e pela facilidade com o que o Estado se isenta a si próprio das obrigações que impõe a terceiros.

henrique pereira dos santos

Arquitecto Paisagista