Em Nova Orleães, onde o Mississípi atravessa a História, arrastando fábulas e segredos, raramente amanhece. Enluaradas, as noites resistem ao tempo e iludem o quebranto. Cravejada de pontos de luz infinita, que, no horizonte, tremulam ao ritmo de timbres alvoroçados, a cidade permanece inquieta. Nas ruas, sons frementes, sincopados. No rio, o reflexo ambarino das estrelas.
As horas diluem-se em melodias, escritas ou improvisadas, que deflagram nas pictóricas avenidas do Bairro Francês. Em Bourbon Street, ouvem-se clarinetes, trombones, trompas e trompetes, acompanhados de címbalos que estrondeiam numa insondável fusão de rigor e anarquia. Com gravidade newtoniana, um contrabaixo oferece a segurança apenas sentida pelos navegadores quando pisam terra firme. E uma voz fervente, mas macia, irrompe para descrever o amor eterno.
Inerte, o relógio da vetusta Catedral de Saint Louis ainda assinala meia-noite, como se tivesse o poder de sustar madrugada. Defronte, o jardim parisiense da outrora Place d’Armes — que se espraia, exuberante, do Cabildo ao Presbitério — acalma a torrente de pulsões e cadências.
Enquanto o mundo dorme, o desmedido clarão persevera no infinito e mostra o destino a uma miríade de errantes indiscretos, que de longe partiram em busca de música e inspiração — a mesma inspiração que assomou a William Faulkner e Tennessee Williams.
Em 1925, antes de viajar pela Europa, Faulkner viveu alguns meses no coração do Bairro Francês, onde sentiu a singular vibração das ruas e cafés. Nesse período, escreveu New Orleans Sketches, um conjunto de textos que marca a sua passagem da poesia à prosa. Iniciou ainda o seu primeiro romance, A Recompensa do Soldado, publicado um ano depois. Por seu turno, Tennessee Williams encontrou na cidade a liberdade por que ansiava desde muito tempo — uma energia dionisíaca capaz de turvar a sua natureza grave e austera. Em 1947, fez de Elysian Fields o cenário de Um Eléctrico Chamado Desejo, peça mais tarde adaptada à grande tela pelo realizador Elian Kazan e protagonizada pelos imortais Marlon Brando e Vivien Leigh.
Descoberta no século XVIII por exploradores franceses, e assim cunhada em honra de Filipe II, duque d’Orleães — além de regente durante a menoridade de Luís XV, o nobre francês coleccionou arte e foi músico —, a cidade transformou-se, com os anos, num interminável dédalo em que se cruzam heranças e culturas.
Depositada nesse inigualável mosaico de influências africanas, espanholas e francesas, uma palavra centenária e misteriosa: jazz.
A tradição musical repousa na memória dos que lhe deram vida: Bill Evans, Billie Holiday, Charlie Haden, Charlie Parker, Duke Ellington, Ella Fitzgerald, John Coltrane, Miles Davis, Ornette Coleman, Thelonious Monk. É controversa, porém, a génese do termo: destilação do jasmim (jasmine) que perfumava os bares de Nova Orleães, alegoria sonora ou simples onomatopeia prestes a brandir em cada noite. As incontáveis metamorfoses adensam o seu lado oculto, clandestino.
Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, o vocábulo jazz advém «do anglo-americano jazzband, donde passou também a várias línguas ocidentais». Ensina o eminente autor que «em França já se documenta em 1918» e que «o seu período áureo decorre nos temos que se seguiram à Guerra de 1914-1918». No Oxford English Dictionary, refere-se, todavia, que a palavra já era utilizada em 1912, em contextos relacionados com beisebol, para descrever um trajecto especialmente veloz e curvilíneo da bola: jazz ball. Existe também a possibilidade de derivar de gism ou jasm, termos ingleses cujos primeiros registos remontam a 1842 e 1860, respectivamente, e que acolhem a ideia de energia e vitalidade. Tais vocábulos ganharam conotação sexual — e o mesmo sucedeu com jazz.
Uma pletora de teorias oferece explicações de natureza vária. Alguns autores – como o académico Walter Kingsley, num artigo publicado no New York Sun em 1917 – defendem tratar-se de uma palavra africana, comum no golfo da Guiné, usada com o sentido de «excitação», o que terá motivado a aplicação à música sincopada. Tomás Borba e Fernando Lopes Graça aludem, no Dicionário de Música, à hipótese de provir do francês jaser — tagarelar —, provavelmente de uso corrente no Luisiana. O saxofonista Archie Shepp é um dos que advogam a descendência francesa. Poderá equacionar-se ainda a filiação árabe: jazibiyah exprime «atracção», «gravidade». Talvez proceda do hauçá, língua camito-semita do ramo chadiano falada pelos Hauçás, povo que habita o Norte da Nigéria e o Sul do Níger, cuja cultura absorve o influxo islâmico. Neste idioma, o termo jaiza designa o estrépito de tambores distantes, como sustenta o antropólogo William S. Pollitzer em The Gullah People and Their African Heritage.
Um texto amplamente glosado de 1919, publicado na Music Trade Review, originou outra tese: a corruptela de um nome próprio. Reza a lenda que o músico Jasbo Brown (ou Jazzbo Brown), assíduo nos cabarés de Chicago, extraía da corneta e do piccolo (flauta pequena, flautim) sons emotivos e extravagantes. Enlevada, a plateia respondia: «mais Jasbo», «mais Jas», «mais jazz». Bessie Smith canta os seus feitos no tema Jazzbo Brown from Memphis Town. E George Gershwin evoca-o na primeira cena de Porgy and Bess, ópera baseada no romance homónimo de DuBose Heyward e conhecida pelas melodias de Summertime, I Loves You, Porgy e It Ain’t Necessarly So. A subida do pano desvela Jasbo Brown ao piano — num blues intenso, hipnótico — ante a escuridão de Catfish Row, local imaginário de Charleston, na Carolina do Sul.
A palavra definiu ainda uma época — um tempo resplandecente de milagres, delírios e assombros em que o eflúvio de excessos rendeu a tristeza e o langor da I Guerra Mundial. Os soldados regressaram a casa, e a melancolia evolou-se numa década de festas, tardias e frenéticas, em que jovens cavalheiros abastados, com roupa encomendada a alfaiates londrinos, dançavam de modo incendiário com elegantes flappers: raparigas independentes, de cabelos curtos e vestidos inspirados em Coco Chanel, que conduziam os seus próprios carros e fumavam cigarros sedutores, sonhando ser Clara Bow ou Greta Garbo. Até ao último laivo de improvisação, não esmaecia a chama dos clubes de Filadélfia e Chicago nem se apagavam as luzes das colossais mansões de Long Island. Eis a Era do Jazz.
- Scott Fitzgerald descreveu magistralmente o tropel desses longos anos de glória vividos em Nova Iorque, Cannes, Paris. Casou com Zelda Sayre — a «primeira flapper americana», como o próprio referiu — e, entre paixões e tormentos, foi autor e personagem de um fragoroso processo de demolição de costumes e pensamentos seculares. Tornou-se símbolo máximo da Geração Perdida: o grupo de artistas cuja obra capta a decadência e desilusão do pós-guerra. Entre eles, Cole Porter, E. E. Cummings, Ernest Hemingway, John dos Passos e Pablo Picasso. A expressão pertence a Gertrude Stein, que acreditava ter Fitzgerald criado o mundo contemporâneo com Este Lado do Paraíso.
No ensaio Ecos da Era do Jazz (1931), inserto em The Crack-Up e Outros Escritos (Relógio D’Água), Fitzgerald associou jazz «a um estado de excitação nervosa, não muito diferente do das grandes cidades do outro lado da linha de fogo de uma guerra».
A palavra jazz — dúctil e longeva — conduz-nos a destinos intocados, a paisagens derruídas. Leva-nos às quentes planícies africanas, onde longínquos tambores acolhem o entardecer, e aos umbrais de lugares inventados em livros que o devir não esqueceu.
As imagens dos dias já vividos permanecem acesas no agora, como se Louis Armstrong ainda cantasse nos barcos a vapor que deslizam no Mississípi — e Gatsby, perdido no álgido desabrigo de uma lembrança, ainda procurasse Daisy em mais uma noite de solidão.
Submersa no passado, a raiz de uma certeza: jazz é apenas o momento, o instante irreprimível que o tempo não apaga nem perdoa.