O episódio, verdadeiro ou falso, é sobejamente conhecido: perante o tribunal do Santo Oficio, onde era julgado por heresia, Galileu negou a sua teoria heliocêntrica e afirmou que a Terra estava imóvel no centro do universo; fê-lo para salvar a vida, mas, no momento em que se retratou, terá murmurado “e pur si muove!”, certo de que o contrário acontecia e de que era a Terra que girava em torno do sol.

Sinto que, nos tempos que correm, há entre os historiadores vários Galileus que, face à pressão do politicamente correcto, dão o seu aval a falsidades já não tanto para salvarem as vidas, mas para preservarem as carreiras — e, talvez, também, a paz na sala de aula, se forem docentes. Estou certo de que muitos desses historiadores murmurarão entre dentes o equivalente contemporâneo do e pur si muove pois estão perfeitamente cientes de que a verdade — e a meta da História é a verdade — é muito diferente daquilo que a cultura woke, dentro e fora das universidades, nos quer impingir.

As vicissitudes de alguns desses Galileus contemporâneos são do domínio público. As mais recentes e esclarecedoras — e estarrecedoras, diga-se — são as de James H. Sweet, professor na Universidade de Wisconsin e presidente da  prestigiada American Historical Association (AHA). Sweet publicou no passado dia 17 de Agosto, na newsmagazine da AHA, um texto intitulado Is History History? onde deixou uma série de interrogações sobre os actuais rumos da disciplina. Esse texto lança aos seus leitores questões importantes, nomeadamente a de saber se aquilo que muitos historiadores actualmente fazem é verdadeiramente História ou simplesmente acção política; conta alguns episódios demonstrativos de como nos Estados Unidos e em África se está a deformar e a falsear a história da escravatura; e critica o “presentismo”, isto é, a tendência para avaliar e condenar o passado à luz das preocupações sociais e das categorias morais do presente (tendência que tem vindo o corroer a História, como campo do saber, e contra a qual eu me insurjo há muito tempo).

A reacção dos colegas e leitores de esquerda ao artigo de James Sweet foi ruidosa e irada, a tal ponto que houve quem exigisse a sua demissão. Dois dias depois, a 19 de Agosto, admitindo que o seu artigo tinha causado “cólera e consternação entre muitos dos colegas e membros da AHA”, Sweet sentiu-se na compungida obrigação de fazer preceder esse seu texto de um acto de contrição, isto é, de uma nota em que pediu desculpa por ter causado dano à disciplina, à AHA e haver ofendido muita gente, nomeadamente colegas e amigos negros que se zangaram com ele. Assumiu que tinha sido desastrado, pouco atento às memórias e aos sentimentos das pessoas, e prometeu redimir-se em futuras conversas com os colegas ofendidos.

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Ora, o que havia Sweet escrito, dois dias antes, para incomodar a esse ponto os colegas, nomeadamente os negros? Fundamentalmente duas coisas:

  1. Contou que numa viagem ao Gana e à pequena cidade de Elmina (a antiga Mina dos portugueses) encontrou um grupo de afro-americanos, daqueles que ultimamente vão em romagem a esse local para homenagear os antepassados escravizados. Essas pessoas traziam consigo um exemplar do livro The 1619 Project — e já veremos adiante o que isso é e o que significa. Sweet referiu que esses visitantes ignoram que, de Elmina, terão embarcado poucos escravos para a América do Norte — menos de 1% do total, segundo o autor —, tal como ignoram que os escravizados que chegavam a esse ponto da costa de África eram para aí levados por outros africanos que promoviam o tráfico transatlântico de escravos de forma tão gananciosa e cruel como os negreiros ocidentais com quem negociavam.
    Os visitantes afro-americanos de Elmina ignoram tudo isso e continuarão provavelmente a ignorá-lo, admitiu Sweet, porque o guia turístico que orientou a visita lhes disse que os antigos chefes africanos entregavam os seus “criados” (não usou o termo “escravos”) aos europeus sem saberem qual iria ser o seu destino; e também não fez referência às guerras em África, como forma de obtenção desses supostos “criados”, nem à escravidão intra-africana. De forma similar, notou Sweet, o filme The Woman King (a estrear em breve), sugere que o rei Ghezo e as amazonas (mulheres-soldado) do Daomé lutavam contra o tráfico de escravos dos europeus quando a verdade é precisamente oposta: o reino do Daomé promovia esse tráfico.
    É claro que os realizadores de cinema ou os guias turisticos não têm de respeitar a metodologia e o rigor históricos, mas como especialista em história de África e da escravatura, James Sweet confessou-se preocupado com os apagamentos que estas narrativas promovem, em especial quando eles transbordam, também, para os livros de história e para o seu ensino.
  1. E, a esse propósito, apontou o dedo a um livro que é um best seller nos Estados Unidos: The 1619 Project: A New Origin Story, um projecto lançado pelo New York Times que põe os negros e a sua escravatura no centro, no âmago, da história norte-americana, que nele é vista como decorrendo dessa escravatura. E o livro a tal ponto o faz que considera 1619, o ano em que chegaram os primeiros escravos negros à Vírginia, como data fundacional dos Estados Unidos, e não a sua declaração de independência, em 1776. Sweet acusou o livro de olhar para o passado com os valores e categorias morais do presente e de, por exemplo, classificar negativamente os presidentes Washington e Jefferson como “proprietários de campos de trabalhos forçados”. E eu acrescento, a propósito, que The 1619 Project equipara Lincoln a um supremacista branco e que é basicamente a narrativa negra e woke da história dos Estados Unidos (o que explica o acolhimento entusiástico que esses sectores da sociedade americana lhe deram; Kamala Harris, por exemplo, elogiou essa narrativa como sendo a reposição da “verdade”). O livro é tão enviezado que vai ao ponto de considerar que uma das principais razões que levou os norte-americanos a tornarem-se independentes da Grã-Bretanha foi a vontade de conservarem a escravidão, o que é um absurdo por várias razões de que destaco a seguinte: em 1775, quando as colónias norte-americanas iniciaram a guerra com a metrópole, ainda não havia um movimento abolicionista britânico nem se antevia que o parlamento, em Londres, viesse a abolir a escravidão (coisa que só aconteceria 58 anos depois).
    The 1619 Project foi alvo de bem fundamentadas críticas de alguns — poucos — historiadores, críticas que lhe apontaram diversas ficções e erros de interpretação e de facto, mas essas objecções e reparos, paradoxalmente, parecem ter legitimado a obra aos olhos do grande público. Talvez por isso, notou Sweet, há muito quem pretenda (ou já esteja a) fazer do The 1619 Project o molde para o ensino da história nacional a nível do secundário — aqui em Portugal há pretensões equiparáveis que já por diversas vezes critiquei —, o que é muito inquietante porque, como o autor sublinhou, não se trata de um livro de história. Eu possuo o livro e posso confirmá-lo: é composto, para além do prefácio, por 18 ensaios, 25 poemas e 11 textos ficcionais. Foi escrito por jornalistas, cineastas, poetas, prosadores, advogados, sociólogos e apenas seis historiadores, e recria, ilustra e enaltece aqueles que os autores da obra julgam terem sido momentos marcantes de opressão, luta e resistência das populações negras à injustiça e sofrimento a que foram sujeitas. Não é uma análise das ideias das pessoas no seu próprio tempo, nem uma descrição de processos de mudança ao longo de décadas ou séculos. Ou seja, como escreveu Sweet noutro contexto, não é historia, é, em boa parte, diletantismo.

Em suma, o presidente da AHA fez observações razoáveis e disse verdades incontestáveis. Abordou, também, outras coisas importantes, coisas que a reacção ao seu texto e o subsequente pedido de desculpas agora sepultaram bem fundo porque, nesta cultura de cancelamento em que vivemos, quando se pede desculpa admite-se uma culpa. Ora, culpa de quê? De ter uma opinião? De dizer a verdade? É, por isso, lamentável e muito preocupante que Sweet tenha cedido à pressão dos seus colegas e detratores  (mesmo que, ao fazê-lo, tenha murmurado, entre dentes, e pur si muove!).

O seu caso teve repercussão nos Estados Unidos onde houve felizmente gente que, ao questionar e criticar a infeliz retratação de Sweet, soube apontar o dedo ao antro inquisitorial em que a academia se tornou. Como diz o colunista do New York Times, por exemplo, se alguém anda à procura da prova de que ser académico se tornou uma actividade ideológica e coerciva, disfarçada de erudição e de colegialidade, não precisa de ir mais longe. É só olhar para o caso de James H. Sweet, o presidente — eventualmente por pouco tempo mais — da AHA.

Isto que se passa nos Estados Unidos ocorre, também, em diferentes graus, noutros países, Portugal incluído. Daí que eu renove um apelo que fiz há cinco anos aos meus colegas historiadores para que resistam a esta pressão woke e ao discurso politicamente correcto. É, também, imprescindível que os historiadores não permitam que as suas vozes sejam silenciadas e substituídas, no espaço público, pelas de antropólogos, professores de literatura, jornalistas, escritores, políticos e diletantes sortidos, que por muitos méritos que certamente têm não possuem a familiaridade com o passado para falar dele com equilíbrio e rigor — o conhecimento histórico é um saber específico que leva muitos anos a adquirir e que não se improvisa. Por tudo isso, é necessário que os que, situando-se fora do wokismo e do esquerdismo, se sentem cerceados ou condicionados na expressão das suas ideias e incomodados com o que se vai lendo e ouvindo a respeito do nosso passado como país, saiam do seu silêncio cautelar e venham às televisões e às páginas dos jornais defender o seu saber específico, e esclarecer o que estará a ser deformado ou mal contado. A liberdade e a verdade agradecem porque… e pur si muove!