Por defeito profissional, tenho o hábito de considerar qualquer cenário, mesmo os aparentemente impossíveis. Uma não recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa a um segundo mandato presidencial não parece estar em cima da mesa, mas deve ser equacionada porque pode acontecer e até há sinais que o indicam.

Quando eleito em 2016, Rebelo de Sousa deparou-se com um país acabado de sair da maior crise que atravessara nas últimas décadas. Marcelo ganhou, porque percebeu que a maioria  pretendia descomprimir e foi precisamente isso que prometeu. Depois de quatro anos de algum sacrifício, o actual presidente considerou ser altura para relaxar e foi o que fez. Foi o tempo da festa, do estar na roda e dançar, dos mergulhos em Cascais, das selfies e da homenagem ao Zé Pedro dos Xutos no Rock in Rio. O primeiro mandato de Marcelo foi o de um presidente emotivo e afectuoso porque era o que parte do país queria. Quem governava só tinha de ir na onda.

Mas isso acabou no dia em que a pandemia chegou.

O cenário, hoje, é completamente diferente do de há 5 anos. Actualmente, a maioria das pessoas não precisa de descomprimir, mas de trabalho e de investimento, que as crianças e jovens tenham aulas e que muitas famílias tenham comida na mesa, além de pagarem os empréstimos das suas casas. Muitos precisam de trabalho, não de abraços; de dinheiro, não de selfies; de uma perspectiva de futuro, não de danças em cima de um palco.

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Vão ser tempos difíceis, que exigem de um Presidente da República muito mais do que Marcelo Rebelo de Sousa nos deu. Ninguém questiona que o actual presidente seja inteligente e conhecedor do que se passa. Não duvido também que analise se será capaz de atravessar o martírio que vai ser o próximo mandato, o mar de aflições que lhe irá bater à porta nos próximos 5 anos. Uma das razões que me leva a crer que Marcelo possa não estar à altura das dificuldades é a forma como agiu em Pedrógão e neste período de pandemia, precisamente os dois momentos críticos do seu mandato. Em Pedrógão, Marcelo Rebelo de Sousa, logo na noite de 17 de Junho e sem conhecer a dimensão da tragédia e a má actuação das autoridades, resolveu que “o que se fez foi o máximo que se poderia ter feito”. Os factos vieram demonstrar o contrário. Já perante esta pandemia, a sua actuação voltou a ser inconsequente. Desde o auto-isolamento, passando pelas declarações inócuas via Skype, até à referência ao milagre português e ao elogio especial feito ao Ministro da Educação quando, pela primeira vez na história da democracia, muitas crianças ficaram sem acesso ao ensino. A festa no Palácio de Belém devido à final da Champions em Lisboa, no dia do terceiro aniversário do incêndio em Pedrógrão (e quando na altura tanto se falou de descentralização), revela, não insensibilidade, mas desligamento da realidade. Algo arriscado para os próximos anos e que Rebelo de Sousa, que é extremamente inteligente, julgo que não irá deixar de ter em conta na sua decisão.

É verdade que tanto Marcelo como o PS de António Costa esperam que os milhões vindos de Bruxelas deem uma ajuda e reduzam as dificuldades. Mas sejamos francos: nem o dinheiro de Bruxelas se encontra garantido, nem as condições para o mesmo encontradas. Não se sabe ainda se o pacote franco-alemão vai ser aprovado, se vão ser lançados impostos europeus indispensáveis para que o custo do dinheiro seja, não o que nos seria cobrado sem o guarda-chuva europeu, mas um preço baixo porque garantido pelas economias mais fortes e menos endividadas da União. O que significa que o dinheiro não vem ou, se vier, virá com um custo muito elevado (austeridade), ou acompanhado de impostos europeus (fim da soberania orçamental e fiscal). O que quer que seja não será pera doce. Entretanto, Marcelo tem o Verão inteiro para considerar o que fazer.

Uma eventual não recandidatura de Rebelo de Sousa colocará problemas ao PS, PSD e CDS. Os três já mostraram a sua preferência pelo actual presidente e não parecem equacionar qualquer outro cenário, o que é estranho pois o profissionalismo assim o exigiria. A desorientação que causaria a estes partidos é, aliás, um dos motivos que me levam a ponderar a hipótese que refiro aqui. Marcelo pode saber não estar à altura mas, devido às suas características pessoais, gostará de salientar que é imprescindível. Que a sua partida provocará mossa. Estragos e danos. Que se pode ir embora, mas vai fazer falta. Que deixará saudades. Que será recordado com afecto. Afecto que, ironicamente, deixa de ser preciso perante o que aí vem.

Sem Marcelo, quem apoiarão PS, PSD e CDS? Tenho dito que o apoio do PSD e do CDS a Marcelo, deixando Ventura livre, provocará estragos irremediáveis nestes dois partidos. A sua não recandidatura exigirá destes um candidato à altura. O drama para quem não se prepara para todo e qualquer cenário é precisamente esse: o ficar sem resposta.