Esta é uma crónica dirigida ao Miguel. Ao Pedro e à Mariana. A todos aqueles que se apressam a criticar o mais ligeiro assomo político que ponha em causa o clima de pânico criado na sequência da pandemia, mas que já pouco tem que ver com a pandemia.

Comecemos, ora, pelo início. Há cerca de um ano e meio atrás, surgia um vírus de que pouco se sabia, sobre o qual recaía uma enorme incerteza. Por cá, as autoridades garantiam que o vírus “quase de certeza” que não afectava humanos; passados três meses, a directora-geral da DGS desaconselhava o uso de máscara, pois transmitia uma “falsa sensação de segurança”. O vírus, esse, fazia o seu caminho. Espanha e Itália, bem antes de Portugal, tinham os hospitais completamente lotados. Implementavam-se protocolos de Medicina de catástrofe para decidir quem tratar — e, ainda que por omissão, quem iria morrer por indisponibilidade de terapêutica. O vírus era real e causava mortes. E mesmo quando não causava mortes, causava complicações sérias. Dezenas de milhares de pessoas internadas, uma grande parte em cuidados intensivos. Dezenas de milhares de pessoas acabariam por sucumbir, e só contabilizando Espanha e Itália. Em Portugal não foi diferente.

Perante este cenário, o confinamento era o caminho possível. Vem nos manuais de epidemiologia: para impedir um colapso do sistema de saúde, a que se seguiriam milhares de mortes, é necessário conter de forma eficaz a propagação do vírus. E não há maior eficácia do que manter toda a gente em casa, quebrando os contactos sociais. Esta medida é a bomba nuclear da epidemiologia e tem de ser usada com parcimónia. Não sendo especialista, a minha convicção é de que, na altura, o seu uso se justificou. Creio que a vasta maioria da população estava de acordo. Os nossos sistemas de saúde não estavam preparados para fenómenos pandémicos. A capacidade de reserva era manifestamente insuficiente — em recursos físicos, como demonstrou a falta de ventiladores, e sobretudo em recursos humanos, pois as máquinas não se operam sozinhas.

Há um ano e meio atrás, a prioridade foi, e bem, as vítimas da Covid-19. As vítimas de então e as vítimas que haveriam de surgir caso o contágio não fosse mitigado. Em Março de 2020 ou mesmo em Março de 2021 compreendia-se a (literal) enxurrada a que éramos sujeitos, todos os dias, a todas as horas, quando ligávamos a televisão, abríamos um jornal ou assistíamos a um sortido vasto de comentadores — alguns de generalidades, outros recém-feitos especialistas — sobre a pandemia.

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O recurso à arma nuclear do confinamento não veio sem custos. Houve variados danos colaterais. O foco na pandemia obrigou a suspender toda a actividade clínica programada, incluindo milhões de consultas de especialidade, cirurgias e diagnósticos oncológicos. A suspensão da economia fechou empresas, causou despedimentos, cortou rendimentos a muita gente. A saúde mental da generalidade da população, sobretudo dos jovens, deteriorou-se substancialmente. A suspensão das escolas poderá ter causado danos pedagógicos irrecuperáveis àquele que é o nosso maior activo enquanto sociedade: as nossas crianças.

Aceitámos estes custos. Fizemo-lo porque acreditávamos que os benefícios superavam, em larga escala, estes custos. As vidas poupadas justificavam os sacrifícios que teriam de ser feitos.

Mas hoje, passado ano e meio, muita coisa mudou. A investigação científica foi fazendo o seu caminho. A experiência também. Fomos aprendendo. As políticas completamente distintas que foram adoptadas pelos vários países ocidentais permitiram fazer algumas experiências naturais, que nos ajudaram a perceber o que é minimamente eficaz.

E talvez mais importante, o engenho humano, num daqueles raros momentos que nos faz voltar a ter esperança na humanidade, foi capaz de desenvolver uma vacina, em tempo recorde. A vacina poderia ter sido um falhanço, mas não foi. Bem pelo contrário. Veja-se os números: na 3ª vaga, em Janeiro deste ano, ainda antes das vacinas estarem no mercado, Portugal tinha uma média de 13 mil infectados por dia, quase 7 mil internados e quase 1000 pessoas em cuidados intensivos. Por dia, morriam quase 300 pessoas. Hoje, temos cerca de 3 mil infectados, o que é bastante superior à primeira vaga, mas que nada nos diz quando grande parte da população está vacinada. O que é relevante é olhar para os internamentos e para as mortes. Os internados são cerca de 630, 10% dos registados na terceira vaga. Já os óbitos diários andam numa média de 5, menos 98% do que os registados em Janeiro, que eram cerca de 291. Noventa e oito por cento menos.

Apesar deste avanço significativo e positivo, apesar destas mudanças no quadro epidemiológico, aquilo a que se assiste diariamente nos órgãos de comunicação social não é muito distinto do que se assistia há um ano atrás. Da mesma forma, também as medidas de confinamento recentemente implementadas pelo Governo parecem desfasadas daquela que é a realidade epidemiológica. Para além de serem mais severas do que eram na 2ª vaga, em que os números eram muito mais gravosos, são completamente desprovidas de racionalidade, científica ou outra. Quem o diz não sou eu, mas a própria Ministra da Presidência, que num assomo de honestidade disse, numa conferência de imprensa, que não sabia se o cerco a Lisboa tinha funcionado, mas que foi muito eficaz a conter a propagação do vírus.

A esta total desorientação soma-se fechar os supermercados mais cedo — e, pior, insistir no erro, depois de se comprovar de que o único efeito era concentrar mais gente num período mais reduzido; medidas que apenas se aplicam ao fim de semana, pois o vírus parece estar inoperacional à semana; fechar escolas, depois de ter sido dito que as escolas não eram vectores significativos de contágio; obrigar ao uso de máscara em espaços exteriores, quando hoje se sabe que a probabilidade de contágio no exterior é reduzidíssima; atentar ao Estado de Direito e à Constituição, impondo recolhimento obrigatório fora de um estado de emergência. Ou então obrigar o Primeiro-Ministro, mesmo com duas doses da vacina e de ter testado negativo, a um isolamento profiláctico após um contacto com um infectado. Felizmente que em Portugal existem poucos opositores às vacinas, porque esta medida poderia ferir de morte a confiança que as pessoas têm, e bem, nas vacinas.

Depois de ano e meio de um bombardeamento massivo de notícias sobre a Covid-19, criou-se um pânico generalizado que, à data de hoje, é completamente injustificado. Isso mesmo dizem os subscritores do artigo “Reconquistar o Direito a Viver”, que são sobretudo médicos, e que nos recordam que todos os sacrifícios feitos, incluindo os confinamentos e a espera pela vacinação, tinham um objectivo. Tinham de ter um objectivo: recuperar a normalidade e não mantermos este clima de pânico sanitário ad eternum.

Porque é que o Governo, então, o faz, e, em boa verdade, com a conivência de uma parte substancial da população? A explicação só pode ser uma: o focus group, a bússola eleitoral que guia o Governo, pediu mais medidas. Atordoados pelo pânico que é diariamente alimentado, as pessoas ficam naturalmente com medo, ainda que tal já são se justifique. O focus group determinou então que havia que se fazer alguma coisa, ainda que essa alguma coisa não fizesse coisa alguma no sentido de conter o vírus.

Até porque, nesta fase, o vírus tornou-se endémico — uma vez mais, quem o diz não sou eu, mas muitos epidemiologistas. E se o vírus se tornou endémico, temos de aprender a viver com isso, especialmente quando o número de óbitos caiu abruptamente. E uma doença, incluindo a Covid-19, não pode ser analisada sem ter em conta a acuidade. E se a doença Covid-19 deixou de ter a mesma acuidade, então há que mudar as respostas. A saúde pública tem de ser holística, não pode ignorar as doenças fora de moda.

Se entre 21 de Março e 12 de Julho de 2021 morreram 402 pessoas com Covid-19, nesse mesmo período morreram 50 mil pessoas de outras causas. 124 vezes mais pessoas morreram de outras causas que não Covid-19. Mas estas pessoas não fazem manchetes nos jornais, não alimentam intermináveis debates. São invisíveis e, como tal, irrelevantes.

Mas não podem ser irrelevantes. Há uns dias, um cirurgião oncológico de um hospital oncológico de referência contava-me que nunca tinha recebido tanta gente com cancros em estágio 3 e 4. No estágio 4 já há pouco a fazer para além de cuidados paliativos que atenuam um caminho sofrido até à morte. Viu isto nos jornais?

O país todo pode estar focado na Covid-19, mas alguém tem de olhar por todos os outros. Por quem viu as suas consultas adiadas, as cirurgias canceladas ou os diagnósticos oncológicos por realizar. Por quem perdeu o emprego. Por quem foi obrigado a fechar a empresa e a despedir. Por quem tem uma família para alimentar, mas não tem sustento garantido. Por quem não tem a opção do teletrabalho, porque o cabelo não se corta à distância. Por todos aqueles que não aparecem nas notícias, mas que existem.

Não tenho qualquer cargo executivo na Iniciativa Liberal, pelo que não me posso arrogar de falar pelo partido, que é, acima de tudo, um conjunto de indivíduos diferentes, com vontades e anseios próprios. Mas tenho a certeza de que a maioria dos membros da IL se revê nesta missão socialmente solene de pensar em todos aqueles que não sendo afectados pelo vírus, também são afectados pela pandemia e, sobretudo, afectados pela discricionariedade das medidas tomadas.

Quando a Iniciativa Liberal se opõe a estas medidas completamente ineficazes, fá-lo não por ser um “partido de jovens reguilas”, como se vê por aí escrito, mas porque não ignora todos os outros que estão a sofrer com os efeitos da pandemia. Sabemos bem que é um caminho sinuoso, porque contraria uma maioria significativa que vive bem com este novo normal, mas é um caminho que tem de ser feito.

O Arraial Liberal não foi uma sardinhada, foi um evento político onde se mostrou que há que retomar a normalidade. Os vendedores ambulantes que por lá passaram estavam agradecidos por poderem voltar a fazer aquilo que sempre fizeram a vida toda, por recuperarem algum do seu sustento. As equiparações à festa do Avante são absurdas, não porque a natureza do evento seja diferente, mas porque as circunstâncias o são: temos menos internados, muito menos mortes e temos sobretudo pessoas vacinadas. O que faz falta é mais arraiais que devolvam a normalidade às pessoas.

É fácil alinhar com a manutenção deste estado de sítio sanitário; difícil é ser das poucas vozes que nos recordam de que há mais vida, ou tem de haver, para além da Covid-19, de que há uma mole de invisíveis que também precisam de ajuda. Mas alguém tem de o fazer.

P.S.: A maioria das estatísticas usadas neste artigo foram retiradas do último programa “As Causas”, de José Miguel Júdice.