Li com interesse o texto de Vítor Bento, assim como tudo o que tem a ver com a Grécia, a zona euro e a União Europeia (UE), mas confesso que não me convenceu. Depois de todas as leituras, ficou patente para mim, se ainda fosse necessário, que a economia não é uma ciência. Parafraseando uma anedota a propósito das pretensões científicas do marxismo, se a economia fosse uma ciência, tê-la-iam experimentado primeiro nos animais… Aprendi mais com o texto de Paulo Almeida Sande, ao pôr em destaque a organicidade político-administrativa do surgimento do euro, na linha aliás dos estudos dominantes sobre a construção da UE.
Contudo, ao deduzir a criação do euro da existência do mercado único, o autor minimiza a convergência política como fundamento último da integração europeia. O euro foi, como Sande lembra, uma concessão arrancada à Alemanha Federal em troca do apoio europeu à absorção da Alemanha de Leste e nada tem que ver com a «exploração» dos «deficitários» pelos «excedentários» invocada por Vítor Bento. Toda a riqueza junta dos «deficitários» não dava aliás para enriquecer os ditos «excedentários»…
Para não falar dos fundos europeus de convergência, essa ideia de haver países «excedentários» e «deficitários» em virtude de tradições culturais incompatíveis, que Vítor Bento oferece como explicação da «austeridade», é demasiado fruste. Basta lembrar que a diferença de rendimento per capita entre os estados norte-americanos é muito maior do que entre os países europeus: variava de um para cinco em 2010 e a coexistência entre eles não se deve obrigatoriamente ao federalismo.
Em contrapartida, a criação da moeda única, à qual só aderiram os países que quiseram, é efectivamente um passo no sentido do federalismo. Só que os federalistas acham o passo curto e os soberanistas demasiado comprido, mas trata-se, sempre, de compromisso político, o qual teve desde sempre opositores à direita e à esquerda do arco soberanista. Já a ideia de Vítor Bento, segundo a qual os EUA e o Reino Unido têm hoje taxas de crescimento mais altas do que a eurozona porque não estão sujeitos à «austeridade», é comparar o incomparável, pois está a falar dos dois países com as economias mais desreguladas do mundo e que, ao mesmo tempo, concentram as duas maiores bolsas de especulação financeira global, a City of London ainda mais do que Wall Street.
Era previsível, portanto, que a crise actual fizesse aumentar na zona euro esses reflexos soberanistas arcaicos, como quem sonha que estaria melhor fora do barco a nadar sozinho no meio da procela, mas nem o euro foi a origem da crise nem voltar atrás seria a solução. Só esperamos que os gregos não descubram isso à sua custa e à nossa por tabela. A crise em curso, já apropriadamente designada pelos economistas profissionais como «a grande recessão», por oposição à «grande depressão» de 1929, vai continuar. A própria noção de austeridade, que se instalou na sequência desta recessão, já fora antecipada há mais de duas décadas nos USA a propósito das dívidas e da ameaça de falência das cidades, como acabou por acontecer com Detroit.
Não à toa, a «grande recessão» foi desencadeada nos USA pelo chamado subprime ou bolha imobiliária, um típico fenómeno político de clientelismo estatal que levou à crise bancária que ainda estamos a viver. A resposta europeia em defesa da moeda única contra a ameaça de falência dos países cujos governos gastaram demasiado para comprar os votos dos seus eleitorados não é apenas um sacrifício temporário. É também um instrumento indispensável para a manutenção da própria UE enquanto gigantesco porto de abrigo de liberdade e prosperidade comparativa para mais de 500 milhões de habitantes nos 29 países da União!
Do ponto de vista da economia política mundial e não da mera contabilidade da eurozona, a «grande recessão» representa, sim, um ajustamento brutal perante a globalização em curso desde 1971, quando os USA puseram fim à convertibilidade-ouro do dólar, por óbvias razões geopolíticas, perante a guerra no Vietnam e a abertura à China. Menos de 50 anos depois, confirmando as teses dos «globalistas», a recessão traduziu-se na emergência definitiva dos BRICs e dos seus seguidores, com os quais a UE, sem petróleo caro nem barato, tem de manter um novo tipo de competição.
Não ver isso e reduzir a instabilidade que ameaça a moeda única europeia a uma injusta distribuição de perdas e ganhos entre «culturas excedentárias e deficitárias» é perder de vista esse extraordinário feito histórico – como 25 anos apenas, contudo – que foi a criação do euro enquanto passo material de sentido federalista. Quanto ao baixo crescimento da eurozona, tem causas sócio-demográficas e políticas demasiado profundas para abordar neste momento.
Por definição, a «austeridade» pretende repor algumas das condições do crescimento, mas não é certo que isso aconteça, como se vê no Japão. Abandonar agora o euro, isso é que seria para Portugal andar décadas para trás, sem excluir o risco de uma regressão democrática semelhante àquela que a Grécia corre se os soberanistas de direita e de esquerda da coligação governamental derem cabo desse instrumento precioso de integração pacífica, por mais lenta e desequilibrada que seja, que é o euro.