O Governo acaba de divulgar o chamado Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) exigido pela UE a fim de libertar cerca de 16,5 mil milhões de euros grátis na sua grande maioria. Com o título pomposo de «Recuperar Portugal, construindo o futuro», o Plano inspira-se vagamente no do Professor Costa e Silva e espraia-se por 143 páginas com projectos de todos os tamanhos e feitios susceptíveis de corresponder às exigências da UE. Ver-se-á se são aceites ou não e se a UE não quererá outros mais apropriados…

Na realidade, o documento não fala de uma verdadeira “recuperação”, mas, sim, de assegurar – sob a vaga designação de “resiliência” – o cumprimento das funções sociais do Estado gravemente postas em causa pela pandemia, como a saúde pública, ou mesmo suspensas, como o sistema de educação. Por exemplo, o SNS receberá menos de 10% do total da “bazuca”, mas a habitação social, que não tem a relevância da saúde nem da educação, receberá 17% para dar à construção civil: se isto é reforçar a “resiliência”, não sei o que esta é!

Ao todo, a rubrica “resiliência”, isto é, as normais funções do Governo, leva dois terços de todo o dinheiro. Quanto às duas dimensões efectivamente inovadoras ficam apenas com um terço do bolo, a dividir pela “transição climática” (20%) e a mais inovadora de todas as dimensões – a “transição digital” – ainda com menos (15%) quando se conhece a sua falta. Ignoro se a UE aceitará esta distribuição, mas estes investimentos não são os mais capazes de transformar o sistema sócio-económico. Quanto muito, reporiam o passado.

Ao percorrer o Plano, ressalta o palavreado da burocracia estatal, à qual o Governo está já a prometer milhares de empregos e a contratar mais funcionários. O escasso fundamento deste peditório resume-se, segundo escrevem, a “enfrentar os bloqueios estruturais e os novos desafios revelados ou exacerbados pela pandemia”. Ora, se há coisa que o plano não tem, é uma visão global do país. Com efeito, à cabeça existem quatro enormes bloqueios históricos que explicam todas as crises desde a de 1890 até à de hoje: o mais baixo nível de literacia de toda a Europa; a mais baixa produtividade do trabalho; a maior proporção de trabalhadores nos sectores agrícola e industrial da Europa; e, finalmente, a maior percentagem de PMEs, sendo este último traço um dos principais motivos da resistência à mudança!

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Para agravar a situação, Portugal passou há mais de meio século da situação colonial ao aumento dos custos de import-export por via continental, pelo que surpreende que o sector das comunicações se resuma aos 1.300 milhões da “mobilidade sustentável” (7% do total). É assim que o crescente atraso do país e as sucessivas crises da dívida tornam a recuperação económica cada vez mais difícil. Tudo isto é reconhecido pelo próprio PRR, que menciona tanto os problemas colocados pelas PMEs como pela Administração Pública, mas as soluções apresentadas não são convincentes!

E falta, evidentemente, o mais importante, mas o “Plano” não pode nem quer falar disso. Com efeito, para além do óbvio viés clientelista da “dimensão resiliência” e dos limites igualmente óbvios das “transições” climática e ambiental, um plano sério teria, pelo menos, de equacionar os crescentes constrangimentos do sistema político, para não falar da grave crise partidária em curso, em boa medida desencadeada pela pandemia, mas não só.

Não é à toa que um Francisco Louçã se precipita a publicar um texto onde procura esconjurar aquilo que se está a passar em Itália («Expresso» do dia 19). Com efeito, o parlamento italiano chegou à conclusão de que a conjuntura que o país atravessa, com a maior dívida do mundo e a continuação da pandemia, só pode ser ultrapassada pelo antigo presidente do Banco Central Europeu, o extra-partidário Mario Draghi. Só este seria capaz de tirar a Itália do atoleiro em que esta se encontra. Louçã tem receio que algo semelhante ocorra em Portugal e surja um governo suprapartidário de carácter reformador. Para já, o presidente italiano convidou Draghi a constituir governo e o parlamento aceitou.

A “geringonça” tem medo que algo do género aconteça em Portugal como seria desejável. Tem medo de perder o poder e o dinheiro da “bazuca”. O receio é remoto, infelizmente, mas os partidos políticos deviam ter consciência que a própria Constituição, além de obsoleta, nunca foi referendada. O mesmo se passou com os acordos europeus. O sistema eleitoral, os corpos representativos e os respectivos poderes não são intangíveis. Podem ser melhorados. Além dos factores sócio-económicos, os actuais agentes políticos sabem que o actual quadro constitucional, eleitoral e partidário é o primeiro responsável pelo atraso do país e pela forma inadequada como tem lidado com a pandemia. Ora, não está escrito que tal quadro não venha um dia a ser alterado. A começar por um governo de crise.