Percorro vagarosamente o corredor do serviço, agora mergulhado na penumbra. Miro o relógio que se mantém equilibrado, qual fio de prumo, na saliência do prego. Os grossos ponteiros pretos, de ponta fluorescente, apontam as cinco e meia. Sinto o telefone de serviço vibrar dentro do bolso do pijama cirúrgico alumbrando, através das fibras do tecido, o metro quadrado que me rodeia. Retiro-o prontamente do seu habitáculo, primo a tecla verde e encosto o auscultador ao ouvido. Informa-me o colega que chefia a urgência interna desta noite que se inicia, neste preciso momento, o meu período de descanso. Agradeço a chamada, notifico-o da sala em que repousarei alguns minutos, manifestando-me disponível para o auxiliar em caso de necessidade.
Abro a porta de uma das salas de trabalho do serviço, penetro na atmosfera carbonosa, apenas laminada pelos escassos feixes de luz que se infiltram através das frestas da persiana, e dirijo-me a um dos velhos cadeirões estacionados ao fundo da divisão.
Encosto-me, deixo cair os sapatos e estiro as pernas. Descubro a face apartando a máscara índigo e os óculos de tartaruga. Permito que as pálpebras se cerrem momentaneamente e é então que os ouço tagarelando.
“As noites eram tórridas, não corria uma brisa. Toda a praça iluminada. A banda tocando, o som do tambor e da guitarra. De quando em vez juntavam-se os moços da filarmónica com trompetes e oboés. O vinho correndo e dançando nos copos. As moças de pele tostada e vestidos floridos conversando em grupos. Nós, fumando como gente grande, encostados ao balcão, observando as moças pelo canto do olho. Quando a coragem nos visitava tentávamos a nossa sorte convidando alguma para bailar. No dia seguinte trabalhávamos debaixo do sol escaldante carregando fardos de palha. Falava-se muito de bola, especialmente quando se roía a côdea do meio dia. Aquando do regresso à aldeia, bem à tardinha, empoleirados na parte traseira da carrinha, planeávamos a noite que se aproximava e projectávamos sonhos que nunca cumprimos. Assim era o Alentejo que já não existe e que já não volta”.
“Tive o privilégio de viver no México no decorrer da minha carreira diplomática. Como eram igualmente belas e coloridas as festas das aldeias, onde pululavam charros, suas mulheres cobertas por finos xailes palomos, e índios, decorados com rosários de camomila e flores de garambullo, cobertos por gabões. Os mariachis, iluminados pela chama dos ocotes, cantando, as travessas de pollo placero circulando e o mezcal derramando-se”.
Reconheço o timbre das vozes. É para mim inconfundível. De que espaço e de que tempo provirão estes diálogos? Apuro o ouvido. Mantenho-me neste doce embalo, com as pálpebras bem apertadas uma contra a outra.
“Lembro-me quando me levou ao bloco operatório. Creio que alguns dias depois de me dar a notícia, na presença da minha mulher e da minha filha, de que tinha cancro. Caminhou sempre ao lado da maca em que me transportavam. Brindou-me com um sorriso, e disse-me que nos haveríamos de encontrar dentro de umas horas. Ao despedir-se apertou-me a mão e dirigiu-me um “até já”. Tem-no visto por aí?”
“Não, a última vez em que privámos veio ver-me ao quarto. A madrugada ia já avançada. O enfermeiro chamou-o pois sentia-me francamente desconfortável, com dores, nauseado. Depois de me observar e de me terem sido administradas as drogas, conversámos sobre literatura. Debatemos as obras e o estilo de Victor Hugo e Émile Zola. Abordámos igualmente Antero de Quental, autor que muito aprecia. Apresentei-lhe a minha posição relativamente à ilegalidade do Acordo Ortográfico de 1990. Aproveitei para falar-lhe do Círculo Eça de Queiroz, do Grémio Literário e convidei-o para almoçar, assim que dali saísse, com uma tertúlia de que faço parte precisamente nesse mesmo Círculo. Fiz questão de lhe fazer chegar, no dia seguinte, um exemplar autografado, e com dedicatória, de um dos meus últimos livros de poesia. Desde então nada mais sei dele”.
Estou aqui senhores. Continuo sempre aqui. Agora deitado num cadeirão nesta sala situada a meio caminho entre as enfermarias em que cada um de vós faleceu. Continuo a ser vosso médico. Continuo a ouvir-vos, mesmo sem ter certezas porque apenas vos ouço de quando em vez, e mesmo sem saber de que dimensão se projecta a vossa voz.
Hesito, será que vos escuto flutuando no limbo que separa a vigília do sono, ou será que vos ouço imergindo no sonho que me embebe o torpor soporífero?
Ausculto-vos no silêncio do hospital. Tenho para mim que talvez seja sempre possível ouvir-vos na periferia das vossas enfermarias definitivas. A palavra articulada e concatenada apenas se torna mais límpida com a eliminação da estática e do ruído de fundo com que a espuma do quotidiano a mascara.
Não me esqueço de vós, vivem em mim, vivem na minha história.
Apuro o ouvido.
Há murmúrios, cochichos e sussurros em fluxo constante. Apenas me é possível descodificar os vossos meus senhores.
As vozes e os espectros dos que aqui pereceram dão corpo e densidade à atmosfera do hospital. Podemos ouvi-los e senti-los se apertarmos as pálpebras uma contra a outra e se apurarmos o ouvido.
Ouço, subitamente, outra voz conhecida tomando parte na conversa.
“Boa noite caros amigos”.
Estremeço. Esta voz conheço-a de curta data. Na realidade, escutei-a, sem fechar os olhos e sem afinar a audição, há poucas horas.
Sou subitamente despertado pelo enfermeiro que me entra pela sala adentro e me avisa, esbaforido:
“Doutor Miguel, temos uma colega lá dentro. Acaba de avisar-me que o doente da cama 2 está em paragem cardiorrespiratória. Iniciaram compressões”.
Recoloco a máscara índigo e os óculos de tartaruga e levanto-me de um salto.
Todos temos o nosso pequeno cemitério. A entrada é também por nós controlada.
Não é ainda chegada a hora de apenas o ouvir de pálpebras cerradas e de ouvido apurado, flutuando no limbo que separa a vigília do sono ou imergindo no sonho que embebe o torpor soporífero.
Há vozes que não se podem converter já em murmúrios, cochichos e sussurros e que devem ecoar, com pompa, circunstância e nitidez, acima da estática e do ruído de fundo da espuma do quotidiano.
Esta há-de ecoar.