Há um ano publiquei um artigo escrito em colaboração com vários colegas e especialistas em desenvolvimento infantil que alertava para os efeitos nocivos das medidas sanitárias previstas para o ano lectivo que passou. Por essa altura, a Ordem dos Psicólogos escreveu também uma carta à DGS em que pedia que estas fossem revistas tendo em conta a saúde mental das crianças. Entretanto o movimento Assim Não é Escola, de que fiz parte, juntou mais de sete mil assinaturas numa petição que pedia o fim de muitas destas medidas e que foi discutida no Parlamento. Durante o ano que passou alguns peritos também alertaram para o atraso que já era visível na aquisição da linguagem por parte das crianças que passam o dia inteiro sem ver a boca dos seus cuidadores (algo que é essencial para o processo de aprendizagem), para o aumento dos problemas comportamentais e da ansiedade, para o aumento dos problemas ligados ao excesso de ecrãs e ao sedentarismo e para o aumento do número de automutilações e até de suicídios na adolescência. Mas parece que nada disto teve impacto ou fez eco na DGS.
Saúde não é só a ausência de vírus e a ciência mostra cada vez mais como a saúde mental tem um papel determinante também na saúde física. Para ficarmos doentes ou desenvolvermos uma infecção não basta entrar em contacto com um vírus: é preciso que ele encontre formas de se replicar no nosso organismo, o que uma boa parte das vezes não chega a acontecer. Na grande maioria dos casos contactamos com vírus bem mais vezes do que aquelas que ficamos doentes. E é aqui que a saúde mental tem um papel importante: porque ela é indissociável da saúde física. É verdade que para termos uma boa saúde física precisamos de nos alimentar bem e de fazer exercício, acontece que é a saúde mental que influencia a capacidade de nos alimentarmos bem e de termos um estilo de vida saudável. Dormir e descansar bem também é essencial para uma boa saúde e a saúde mental, mais uma vez, também influencia e muito a nossa capacidade de descansar o suficiente. O estudo das experiências adversas na infância foi feito com mais 17 mil pessoas e concluiu, que quem passava por níveis de stress tóxico na infância (que aconteciam quando as pessoas tinham várias experiências adversas) tinha muito mais probabilidade de sofrer todo o tipo de patologias na idade adulta: desde obesidade, dependência, diabetes, problemas cardíacos e pulmonares e tinha até maiores probabilidades de ter acidentes e sofrer fracturas graves.
Outro aspecto importante deste estudo foi a forma como estas experiências adversas estavam presentes na vida de uma grande parte das pessoas de todas as classes. E demonstrou muito bem que é preciso investir numa infância verdadeiramente segura se queremos realmente ter adultos saudáveis no futuro.
Tudo o que acontece na infância tem muito mais impacto do que aquilo que nos acontece em adultos. Sabemos, hoje em dia, que o cérebro está em grande desenvolvimento nos primeiros anos da nossa vida em que estamos ainda a aprender aquilo que podemos esperar do mundo e das relações, por isso tudo o que acontece nesses primeiros anos fica mais facilmente gravado e tem mais impacto. A adolescência é outro período sensível para o desenvolvimento de várias capacidades e outra altura em que o cérebro está em grande transformação. De uma forma muito sucinta, podemos dizer que nos primeiros anos a criança está a aprender a sentir-se segura dentro da família e na adolescência está a aprender a sentir-se segura no mundo. Por isso as crianças precisam de se sentir seguras com a família e com os adultos que cuidam delas e os adolescentes precisam de se sentir livres para conhecer e explorar o mundo, ao mesmo tempo que continuam a precisar de ter uma base de segurança com os adultos, claro.
Na infância é fundamental aprender a confiar nos adultos cuidadores e, para isso, as crianças precisam de ser capazes de avaliar e reconhecer todas as expressões não verbais que transmitem muito mais informação do que o verbal. Acontece que a máscara pode dificultar bastante esse processo, sobretudo nos mais novos em que esse mecanismo de reconhecimento é mais imaturo e por isso precisa de todas as pistas que conseguir obter. Além disso, quando as máscaras impedem as crianças de reconhecer as emoções expressas pelos adultos isto também lhes dificulta o reconhecimento das suas próprias emoções porque elas precisam de um espelho. E este espelhar das emoções tem um aspecto fulcral também no desenvolvimento da empatia.
Enquanto aprendem a confiar nos adultos, as crianças também estão a aprender a confiar em si mesmas. Por isso, incutir-lhes a ideia de que podem transportar um perigo invísivel para si e para os seus familiares pode ter um efeito devastador no seu desenvolvimento: transmitir a ideia de que é perigoso estar perto das pessoas, é perigoso tocar e beijar é algo que elas não terão capacidade de registar como sendo temporário. As crianças nem sempre compreendem as razões ou, mesmo que compreendam, na verdade não são elas que ficam registadas na sua memória. Se as assustarmos o suficiente – e é fácil assustar quando entram em escolas onde é constantemente repetido que existe um perigo invísivel (essa repetição acontece com as desinfecções constantes, com a máscara sempre presente e com todas as outras regras que bloqueiam os seus impulsos naturais), aquilo que estamos a activar são as partes mais primitivas do seu cérebro que, na verdade, também são sempre as mais activas na infância. As crianças ainda não têm o cortex-pré-frontal bem desenvolvido: este desenvolvimento começa só por volta dos seis, sete anos de idade e termina por volta dos 25. Esta estrutura cerebral é que nos permite controlar impulsos que são naturais: de tocar, de nos aproximarmos, de querermos ficar perto das pessoas de quem gostamos. Como adultos temos alguma capacidade de racionalizar este instinto natural e de o conter com alguma facilidade, pelo menos quando tudo está tranquilo nas nossas vidas. Mas as crianças ainda não têm essa capacidade de todo e os adolescentes também ainda não a têm bem desenvolvida. Por isso, a única forma de controlar instintos naturais nas crianças, de as manter longe umas das outras ou de as fazer manter uma máscara a tapar o rosto é deixá-las em estado de alarme. Este estado de alarme faz com que esta ideia de que a proximidade é perigosa fique registada nas partes mais primitvas do cérebro, zonas, onde as razões não interessam. Isto significa que há uma forte probabilidade que a criança cresça e se desenvolva sempre com esta noção de que há um perigo invisível, de que ela pode ser um perigo para si e para os outros. E isto não desaparece com a mesma facilidade com que poderá desaparecer num adulto. Por isso é fundamental que comecemos a perceber que tudo na infância tem mais peso, mais impacto e pode deixar marcas e consequências que ficarão para o resto da vida.
Se virmos a saúde de um ponto de vista mais global percebemos facilmente que, a nossa obsessão com o controlo de um determinado vírus tem-nos levado a criar doenças de muitas formas diferentes, ao mesmo tempo que pensamos estar a evitá-la. Os danos provocados pelo uso prolongado das máscaras, por exemplo, já estão bem documentados numa meta-análise que reviu 65 estudos e que encontrou evidências para todo o tipo de danos quer para a saúde física quer para a saúde mental que os autores descrevem de forma bem detalhada. E percebemos também que não faz sentido nenhum que os peritos em saúde mental tenham vindo a ser simplesmente ignorados ao longo deste tempo, a não ser quando é preciso perguntar-lhes como fazer as pessoas aderir ainda mais às regras estabelecidas.
E se entendermos as crianças, percebemos que é altura de as libertarmos deste medo e das suas consequências, cujo efeito devastador já se faz sentir de muitas maneiras diferentes, mas que poderá vir a ser conhecido a fundo apenas daqui a alguns anos. Um ano na vida de uma criança ou de um adolescente, não é o mesmo que um ano na vida de um adulto. Agora que este ano lectivo acabou e será altura de começar a pensar no próximo – que vai começar numa fase em que estarão vacinadas todas as pessoas que assim o desejarem – é altura de reconhecer que as crianças precisam de ser protegidas e não podem continuar a ser os danos colaterais de uma doença que a elas pouco ou nada tem afectado.