Já foi há mais de uma década. A Irmandade Muçulmana perdia o controlo do Egipto depois da remoção de Mohamed Morsi. O general Al-Sisi liderou os insurgidos e abriu uma nova época no país africano.
Poucos perceberam a importância do evento, mas a sua ocorrência definiu os anos vindouros, tanto no Mediterrâneo como na Europa. Depois da destruição da Líbia um Egipto nas mãos da Irmandade Muçulmana teria tudo para controlar o país vizinho. A Líbia teria sido uma plataforma ainda mais perigosa para a segurança europeia. As descontroladas migrações rumo à Europa teriam sido ainda maiores, ameaçando os frágeis equilíbrios europeus.
Muitos idealistas ficaram chocados em 2013. Aquilo que definiam como o processo democrático do Egipto havia sido brutalmente estancado através dum golpe de Estado. Muitos ignoram que radicais islâmicos, entre outros, se escudam por detrás de noções como o “liberalismo” ou o “Estado de Direito” com o intuito de as subverter por dentro; desejam implementar sociedades que nunca poderiam ser consideradas liberais por qualquer observador atento.
A vitória de Al-Sisi foi uma derrota geopolítica para a Turquia. Muitos pensam que a liderança do mundo sunita tem a Arábia Saudita como actor primordial. Meca e Medina estão dentro das suas fronteiras, o país é indiscutivelmente marcado pela herança islâmica – mais do que o Egipto que se alicerça numa tradição mais antiga. Nós discordamos. Os actores principais são a Turquia e o Egipto. Nos últimos anos a nova vaga de islamização da Turquia só terá escapado aos mais distraídos, o Egipto por sua vez é bem mais tolerante. O exército é por vezes a única força que consegue domar o radicalismo islâmico…
Em 2020, aqui mesmo no Observador [Erdogan, Santa Sofia e o retorno do Califado], havíamos alertado para o sonho de Erdogan – a ressurreição do Califado. Sem a intromissão de Al-Sisi esse sonho estaria muito mais consolidado. Al-Sisi não agiu sozinho, muitos na sociedade egípcia aperceberam-se do perigo colocado pelo radicalismo. Um deles foi o grande pensador Abdelrahim Ali. Mas Ali sabia que a Irmandade Muçulmana é uma entidade tentacular, as suas derrotas no Mediterrâneo Oriental não foram o seu fim, longe disso. O seu livro Les pensées sataniques, l’Europe et le défi de l’Organisation Internationale des Frères musulmans (em português: Os pensamentos satânicos, a Europa e o desafio da Organização Internacional da Irmandade Muçulmana) é um alerta que infelizmente não é suficientemente conhecido. Ali, entrevistado em França, lamentou-se recentemente que o espírito de resistência à Irmandade Muçulmana é quase inexistente no Velho Continente. Esperemos que alguns dirigentes comecem a abrir os olhos antes que seja tarde de mais. A Conferência Internacional realizada recentemente em Roma é um bom sinal, mas certamente insuficiente. Giorgia Meloni realizou à margem do evento um tête-à-tête com o primeiro-ministro egípcio, algo que demonstra a perspicácia do governo italiano.
Um número considerável de progressistas europeus acolheu as acções da Irmandade Muçulmana como algo de positivo. Fascinados pelo exotismo e por pelas potencialidades do multiculturalismo, foram os idiotas úteis dos lobos em pele de cordeiro.
A próxima eleição para a presidência egípcia realizar-se-á no início de 2024. Por esse mundo fora as forças radicais – da Irmandade Muçulmana e não só – preparam-se para infiltrar as opiniões públicas, principalmente aquelas da Europa Ocidental. Será dito que o Egipto vive uma terrível ditadura militar e que tudo tem que mudar na terra das pirâmides. Mas estamos nós certos que a mudança seria para melhor?
Em 1517 a dinastia mameluca chegava ao fim. Selim I derrotou o seu último líder – Tuman Bay II – e entrou triunfante no Cairo. Erdogan não se importaria que a história se repetisse. O controlo do mundo sunita passa pelo Cairo e Al-Sisi pode ser a última muralha; a última muralha do Egipto e a nossa.