Quando Constantinopla caiu para os turcos em 1453, o fim do Império Romano Oriental estava oficialmente consumado. Este império bizantino havia resistido mais mil anos do que o seu primo ocidental, que desapareceu em 410 quando Alarico saqueou Roma. René Grousset – brilhante historiador – conta, nos seus escritos sobre as Cruzadas, que sem a iniciativa militar do papa Urbano II e as consequentes expedições, Constantinopla teria caído muito antes, abrindo assim o caminho à islamização do Velho Continente.

Afortunadamente, para nós, desafortunadamente, para eles, em 1453, a Europa romano-germânica já estava bem mais estruturada e já era bem mais poderosa do que no século XI; assim sendo, o cerco a Viena de 1529 não conseguiu vergar a cidade, que serviu de baluarte a um espaço ocidental que já havia começado a fracturar-se com Lutero, e se fracturaria ainda mais com Calvino.

Os mais desatentos descobriram recentemente que o Estado turco decidiu transformar a Santa Sofia em mesquita, outra vez. Ouvimos o descontentamento de muitos, mas a verdadeira questão é a seguinte: podemos impedir um Estado soberano de fazer o que quer no seu território? Se formos partidários da soberania, no sentido vestefaliano da palavra, a resposta é não. A UNESCO já deplorou a decisão do Estado turco, deixando claro que lamentava que a mesma tivesse sido tomada “sem nenhum tipo de diálogo ou aviso prévio.” É também dito que a Santa Sofia “é uma obra-prima arquitectural e um testemunho único quanto às interacções entre a Europa e a Ásia durante séculos.” Asserção duvidosa, a Santa Sofia é, acima de tudo, um testemunho da genialidade grega e a última vez que verifiquei, os gregos eram europeus.

Esta decisão do governo de Erdogan inscreve-se numa estratégia imperial bem mais lata, que vai da Alemanha à Síria e da Líbia à Etiópia. Analistas pouco cautos disseram que a Turquia interagiu com o Estado Islâmico essencialmente para comprar petróleo a baixo custo. Foi uma das razões, mas não a única. Não ver nessa interacção uma vontade de legitimação do Califado, que,lembremo-nos, foi turco até à sua abolição, demonstra um conhecimento superficial da identidade otomana. Recentemente, o Estado francês retirou-se de uma operação da NATO no Mediterrâneo devido à insolência turca, um movimento que, se seguido por outros, poderá levantar uma questão importante: a Turquia partilha os objectivos dos outros membros da Aliança? A resposta é bem clara: não.

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Mas isto só é problemático num pensamento idealista europeu, que vê a Aliança como protectora de determinados valores. A Turquia entrou para a NATO, porque foi vista pelos estrategas norte-americanos como uma mais-valia contra o comunismo. Hoje, continua na NATO, porque é um rival estrutural da Rússia naquela zona do globo, recebendo carte blanche por parte dos americanos, numa estratégia de containment anti-russa. Não obstante, o feitiço pode virar-se contra o feiticeiro – convém relembrar que Bin Laden foi outrora homenageado como um freedom fighter e acabou como um adversário resoluto dos Estados Unidos.

Desenganem-se os crentes que pensam que ao menos Erdogan está a reter as vagas migratórias que deterioram o ambiente altamente tenso em imensos países europeus. O Sultão aceitou o pagamento da U.E., mas mesmo que uma rota abrande, outras continuam bem vivas como denuncia regularmente Salvini – os barcos continuam a ancorar em Itália. Se pensarmos que imensos africanos, e muitíssimos asiáticos, querem vir para a Europa, esta questão vai continuar a dar pano para mangas.

Ainda há quem acredite nas resistências do kemalismo face ao otomanismo de Erdogan, pobres ingénuos. A estrutura kemalista foi instrumentalizada de uma maneira fenomenal para cumprir um projecto que é diametralmente oposto ao de Ataturk. A Anatólia dos nossos dias é a antítese daquela nação que se imaginava ocidentalizada e secularizada, que queria esquecer o seu passado sunita e oriental. O passado pode dormitar, mas mais cedo, ou mais tarde, acaba por ressurgir.

Nesta sexta-feira, dia 24 de Julho, a Santa Sofia volta a ser um reduto religioso maometano. A magnitude desta realidade será avaliada pelos historiadores vindoiros, eu limito-me a constatar o seguinte: há datas, como as no topo deste artigo, que revestem uma importância simbólica grandiosa. Eu pergunto-me se 2020 não será a data que os historiadores do futuro apontarão como o renascimento do Califado. Abolido, de facto, em 1923 com a instauração da República da Turquia, retornado em 2020 com a reapropriação de Santa Sofia.

Enquanto a omnipresente pandemia monopoliza as discussões e as preocupações, a Turquia continua a fazer o que bem lhe apetece, desta feita em águas gregas. Ancara enviou navios de guerra para as imediações de Castellorizo. A aventura turca na Líbia é pensada geopoliticamente como uma operação que limite a influência egípcia em África e a grega no Egeu. Os gregos são mais uma vez humilhados e deixados sós face a um poder turco que cresce diariamente, destronando todos os compromissos passados.

Também no Cáucaso se movem os turcos, esperando um enfraquecimento da Arménia e do Azerbaijão que lhes permita ganhar ainda mais influência na dita área. Não é de descartar que a recente escaramuça entre as duas nações tenha sido amplificada, ou mesmo atiçada, pela estratégia imperial que o expansionismo turco necessita.

Por aqui, neste cantinho à beira mar plantado, continuamos a ignorar as relações de força, deduzindo que fazendo-o, elas vão acabar por se dissipar. Erro funesto e talvez o maior pecado do pensamento em voga – pensar que o poder é uma coisa do passado, próprio de estados autoritários.

Há quem pense que o político é o parlamento, ou o voto, ou ambos. Deveriam ler o Conceito do Político de Carl Schmitt: “Quando um povo teme os incómodos e o risco duma existência política, ele encontra simplesmente outro povo que o descarga desses incómodos assumindo a sua protecção contra os inimigos exteriores e como consequência a soberania política; é então o protector que designa o inimigo em virtude da correlação constante entre protecção e obediência.” Abdicar de jogar o jogo não faz com que ele cesse, simplesmente faz com que sejamos sofredores da História em vez de fazedores.