Na sequência dos debates televisivos a que todos assistimos no último mês, recordei-me de um discurso de uma conferência organizada pela Polícia Judiciária (PJ), em articulação com o Europol Innovation Lab e o European Clearing Board (EuCB), no final do ano passado – “Leading Innovation in the LEA of the 21st Century” – em que procurava respostas a algumas questões, que levanto há algum tempo, sobre o trabalho de polícia e das polícias e sobre a crónica lentidão dos sistemas da administração publica, mais especificamente, na Justiça.

Nestes tempos de campanha eleitoral, muito se fala sobre questões já anacrónicas, relacionados com as eternas e prometidas reformas do Estado e da Administração Pública (AP), assim como, das necessidades de modelos de antevisão e de estratégia, nunca definidos ou talvez até, nunca pensados. Muito se fala sobre a necessidade de políticas concertadas entre legislaturas no sentido de se estabelecerem políticas comuns visando o bem do país e das pessoas. Muito se fala.

No entanto, pouco se discute. Reformulo. Pouco se decide, sobre os fatores e as pretensas soluções para tentar corrigir um epifenómeno com décadas. Tende-se a politizar a solução e a apresentar projetos fósmeos e colossais e porquanto irrealizáveis, quando na sua base, falha quase sempre a projeção inicial. Projeta-se a ideia de meter um homem na lua, mas nunca se pensa em construir uma escola de astrofísica. Projeta-se o fim do caminho sem nunca dar o primeiro passo. Acontece. Muito. Quase sempre, vá.

Se um político, gestor ou comentador discursa sobre os enormes problemas de ter uma Justiça lenta, observo quase sempre com desconfiança os seus reparos repetidos e identificando nas suas generalidades, que aquele, não tem a menor ideia do que fala. Melhor: que as generalidades que apresenta não oferecem nenhuma solução a curto prazo e com os recursos que a justiça tem ao seu dispor. Recordo a questão do orçamento da justiça. Adiante.

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Mas se um interlocutor qualquer, me tentar explicar a melhor forma de acelerar o método de obtenção de um documento oficial, ou de obter uma declaração de forma automática, ou da possibilidade de transferir entre serviços, dados sob proteção do segredo de justiça, de forma segura, económica e rápida, parece seguramente um pensamento mais exequível, até porque sabemos através do discurso, que de certeza que se deu ao trabalho de analisar os processos de tratamento e de circulação desses documentos. Deu-se ao trabalho de ver os processos, as pessoas e os instrumentos. Deu-se ao trabalho de tentar, de começar. Tem a minha atenção.

Estas pequenas mudanças, provocadas ou impulsionadas pelos agentes, num processo ou num determinado projeto, podem ter um efeito multiplicador e são, na minha opinião, num país com recursos tão limitados e perecíveis, o segredo para uma evolução sustentada em praticamente todas as áreas.

Acredito na revolução passo a passo, na pequena solução, nas estratégias de promoção de pequenas mudanças, que evolvem as pessoas, geram entendimento, com baixos custos, por vezes apenas organizando e rentabilizando o que já existe, alicerçadas na compreensão dos sistemas e das dificuldades e, estabelecendo confiança e edificando com solidez e de forma perseverante, com foco e ambição. Por outro lado, não acredito nas grandes reformas e nas projeções sebastiânicas, de mudar a vida de um dia para o outro, esperando apenas o investimento necessário ou o vindouro messias para o problema. Alguns debates prometeram isso. Um erro.

A evolução e a aceleração da Justiça, da segurança e consequentemente do trabalho policial, assim como dos seus processos repetidos, consumidores de recursos e com enorme peso burocrático, estão para sociedade portuguesa, como a crise climática para o globo terreste: há alguns tipos que ainda duvidam, mas já não há como evitar essa reforma.

A exigência de uma justiça célere, humana, que alicerce a economia, a igualdade e a sustentabilidade social do país, são apenas uma consequência da velocidade a que a sociedade já funciona. Da rapidez, da disponibilidade e do acesso à informação.

Uma proposta de trabalho para acelerar a Justiça, combater a corrupção de forma eficaz e dar condições de trabalho às polícias, eliminando definitivamente o que não é aceitável passa, consequentemente, por quatro fatores de rutura ou, se quisermos, de planeamento:

A capacidade de inovação das organizações, envolvendo a academia; a criação de automatismos nas organizações e pela libertação parcial destas, dos fatores burocráticos e hierárquicos tradicionais; a capacidade de atrair novos tipos de pensamento técnico – hardskills — geridos e sindicados, por pessoas com reconhecidas capacidades de liderança, baseadas, cada vez mais, nas softskills; pela capacidade de utilizar e implementar, eficientes modelos de gestão e de rápida resposta ao cidadão, tentando em cada passo, empatizar com as necessidades exigidas pela sociedade da informação.

A inovação e a antevisão do futuro no trabalho policial – os automatismos e a sua importância.

As tecnologias emergentes, como a Inteligência Artificial (IA), são hoje recursos que fazem parte de uma corrente de resposta à criminalidade grave, complexa, organizada, transnacional e tendencialmente digital. O passo que falta. Com a tecnologia ao serviço das necessidades da investigação criminal e da justiça, assim como da segurança no seu todo.

Algoritmos que constroem modelos matemáticos com base em dados, que permitem aos computadores prever e responder a questões de forma mais célere e que não são comparáveis com a razão humana. Comparáveis no duplo sentido da palavra. Se por um lado a velocidade e capacidade de resposta é superior, existem ainda muitas limitações nestas soluções e principalmente nas perguntas que estes mecanismos (ainda) não são capazes de fazer.

Impossibilidades ao nível das perguntas, dos sentimentos, da dúvida e da empatia. Em suma, todos os processos que exigem emoção e gestão de habilidades que envolvam a algum tipo de afinidade ou de entendimento, ficam (para já) fora do alcance deste tipo de processos.

Estamos longe de automatizar decisões que são tomadas com base nas softskills e são estas as intervenções, também pelos perigos inerentes, que devemos manter fora dos automatismos. A liderança, a visão humana e a curiosidade são ainda o que nos distingue das máquinas e por agora, é aqui que podemos estabelecer a diferença quando queremos inovar.

São nestas valências, em que podemos fazer a diferença. Inovar com disrupção, ou seja, utilizar instrumentos de outra aplicabilidade, em diferentes modelos de trabalho.

No entanto, a par com áreas tão dispares como a educação, os transportes e a investigação cientifica, podemos aumentar a automatização dos procedimentos administrativos, podemos mecanizar tarefas, podemos avançar com pequenos passos na substituição de funções rotineiras, alterar processos e modelos de funcionamento, no sentido de aligeirar empreendimentos que consomem tempo e recursos de forma inimaginável e deixar mais tempo para as funções de decisão e de verdadeiro pensamento. Precisamos de complementar o trabalho humano, valorizando e acelerando os procedimentos consumidores de recursos e tempo. Precisamos de combinar verdadeiramente o trabalho de polícia e da justiça, com automatismos entregues às máquinas, se estamos interessados em acelerar, por exemplo, o combate à corrupção.

A titulo de exemplo a JPMorgan Chase, introduziu um sistema automático de análise de contratos, que em poucos segundos devolve resultados que antes consumiam cerca de 360 mil horas aos agentes de empréstimos. Estes agentes não decidem com base na sua análise. Decidem com base nos factos que resultam da análise das máquinas. Decidem com base em factos e não suportados noutros fatores.

Estas questões não são novas, mas a resistência, na administração publica, em implementar estas dinâmicas tem, entre muitas outras questões, duas explicações associadas: por um lado, a atual administração pública não permite que sejam mecanizados procedimentos que exonerem algumas decisões hierárquicas, redundantes e de puro controlo conservador, por outro, os atuais decisores temem perder o poder de decidir.

Eliminar os aparelhos hierárquicos ao mínimo e preparar os funcionários para trabalharem em sintonia com os mecanismos automáticos, em tarefas restritas, alivia carga horária e permite valor acrescentado e qualidade ao trabalho efetuado, assim como à qualidade de vida dos trabalhadores.

Replicar as respostas dos processos existentes mais eficazes e eliminar os erros mais frequentes é uma tarefa fundamental para aumentar a competência e o tempo de resposta.

Sendo a IA a tecnologia do nosso tempo, seria tempo de permitir que este tipo de instrumentos, penetrasse com razão e a coberto de algum domínio, na ajuda ao passo seguinte que a reforma da Justiça e das polícias necessita.

Então porque razão não se avança com estas soluções?

Por inúmeras razões que se centram sobretudo na necessidade de controlo, no medo da sindicância transparente e na necessidade de criar as famosas “quintas” que desejam controlar dentro da AP.

Vejamos a título de exemplo: a dispersão da informação criminal e a necessidade de dominar esta vertente fundamental da estrutura de justiça.

Na Alemanha, sofre-se de um problema seriíssimo em virtude da amplitude de sistemas computacionais que as polícias possuem. Todas as plataformas de informação são distintas e não interatuam entre si. É extremamente difícil partilhar informação entre os diferentes estados. Aqui mais próximo, na vizinha Espanha, o mesmo problema coloca-se entre as diferentes autonomias e os diversos corpos policiais.

Por cá, uma plataforma de informação criminal centralizada, denominada (SIIC) criada no inicio do século, deu lugar a variadíssimos sistemas independentes e isolados entre polícias, em virtude de, entre outros fatores, os órgãos de polícia de competência genérica, terem resistência de partilhar a informação criminal com a agência de investigação criminal portuguesa, a Polícia Judiciária.

Hoje, após esta informação ter sido espartilhada – com investimentos milionários em diversos sistemas, dispersos por todo o lado – arrepia-se caminho, criam-se legislativamente pequenas correções, gabinetes de contacto e plataformas policiais comuns, no sentido de reverter o dano identificado e centralizar essa mesma informação criminal, outrora reunida. Parece uma condenação. Parece que fomos de facto feitos para isto. Fazer bem e desfazer.

Um pequeno detalhe: quem alimenta esses gabinetes de contacto e essas plataformas comuns, são os mesmos atores que boicotaram a primeira base de dados. Procuram-se resultados diferentes, com as mesmas soluções e os mesmos intervenientes?

Assim, volto à questão: O que queremos afinal?

Sei o que não queremos e seguramente, que não queremos a informação criminal dispersa, servindo como mais um pretexto para tentarem de outro modo, mais uma vez, a alteração do modelo policial português (ora em curso). O problema, caros leitores, referindo-me apenas a este exemplo, não está na forma do modelo policial português nem nos excelentes resultados. O problema reside na extremada dependência das organizações dos seus gestores – bons ou maus – e na intenção destes de terem o domínio e a exclusividade da informação criminal, preterindo a finalidade do serviço público à ambição de poder e ao controlo absolutista a todo o custo.

Voltando à presciência dos mecanismos de automatização.

Pois é. Estes, não permitem este tipo de controlo e de domínio. Não substituirão as pessoas, mas aumentam o poder da democracia e a independência das organizações em face de decisões humanas de gestores com intenções imperialistas. A concretização da pior forma de serviço público: O serviço público centrado na ideia de um homem.

A independência das organizações

Aumentando o poder das organizações, limita-se o poder dos decisores, administradores, diretores ou comandantes, que em democracia, devem ser sempre transitórios. Este poder organizacional aumenta exponencialmente a transparência e suporta-se em vetores que obriga a defender esta mesma transparência e a decisão racional.

Para além deste benefício democrático óbvio, a introdução de mecanismos de IA, aumentará a necessidade de os administradores recorrerem às softskills na liderança das pessoas, logo, têm que ser decisores, gestores e principalmente… líderes. Têm que ser pessoas que, naturalmente criem ambientes de motivação e de dinâmicas de trabalho mais benéficas e mais fluidas ao trabalhador, logo mais produtivas.

Não falamos de treinar máquinas com procedimentos antigos para que estas escolham a melhor das atuações existentes face a um problema. Falamos de, através de treino com processos antigos, instruir máquinas, para que estas solucionem problemas e encontrem novos processos. Esta é a grande diferença, entre o que estamos a fazer atualmente e o que devemos fazer no futuro.

A informação criminal, como vimos, está dispersa e não flui entre os diversos atores da segurança interna. A justiça é lenta, não só, mas também, pelo excesso de intervenção humana nos modelos de partilha desta informação. Esta necessidade quase congénita de controlo e este mecanismo poltrão, não permitirá, apesar de se estar a investir em novos sistemas, o passo seguinte numa Justiça digital (não confundir com digitalizada) transparente e na sua consequente aceleração.

Devemos ter em mente que os sistemas de informação e comunicação atuais, em vez de terem promovido o conhecimento e o debate na sociedade, promoveram a rutura e o aparecimento de focos de informação extremistas com ideias fixas e promovendo a intolerância. Hoje assistimos a uma quase ausência na vertente pragmática, informativa e comunicativa das estruturas de comunicação. Mistura-se, confunde-se e controla-se, ou deseja-se controlar, a informação. Também na justiça e no sistema policial.

Talvez porque se perdeu a natureza pedagógica do associativismo nas gerações mais jovens. Talvez porque o grupo, a entreajuda e a cooperação deram lugar ao indivíduo, ao egoísmo, à competição e concentração do conhecimento. Talvez porque a AP e a Justiça são uma amostra da nossa sociedade…

Se por um lado há uma tendência em tentar replicar procedimentos antigos, utilizando as novas tecnologias, olvidando-se todos os dias que os tradicionais processos hierárquicos têm tendência a desaparecer ou a reduzir-se a um mínimo, por outro lado há um bloqueio sombrio à possibilidade de criar mecanismos de controlo automatizados, que esquecem o nome e o cargo.

Qualquer oportunidade de tornar algum mecanismo automático ou automatizado, é ultrapassado pelo medo da perda de controlo e este temor impera nas decisões. Como vimos, se por um lado, a hierarquia teme o esvaziamento do seu conteúdo funcional, por outro, receia perder o controlo e o domínio do sistema.

O aumento da complexidade da sociedade com as novas tecnologias e o aumento de interconexões aleatórias e sem hierarquia, não foi acompanhado pela administração publica, preferindo esta, até nalguns momentos, fingir estar a par destes novos fenómenos. Finge-se que este problema se solucionará com alguma epifania ou injeção de capital conveniente e que assim se poderá efetuar o definitivo salto qualitativo, em que do dia para a noite se poderá estar par a par com a melhor tecnologia e as melhores práticas.

Nada mais errado. Tudo é, tudo foi, muito rápido e muito disruptivo. Temo que não sabemos lidar com os novos fenómenos e hoje luta-se e sua-se para acompanhar, para estar ao lado da solução, carregando os anos de atraso às costas.

Não obstante, nos poucos momentos e oportunidades em que nos são dadas possibilidades, até económicas, de inovar, preferimos não errar, não tentar, não errar de novo, não inventar.

Gostamos do seguro conservadorismo de não ser acusados de ter decidido mal. Este é o risco e o medo. Medo de decidir.

Insistimos em copiar procedimentos, ignorando o pensamento disruptivo e a possibilidade de inventar novas formas de fazer mais e melhor, de modo a servir melhor a sociedade.

Receamos tornar as organizações mais fortes do que o decisor do momento. Receamos inovar nos procedimentos, nas regras e nos processos.

Este é o ponto de rutura. O ponto necessário. A evolução definitiva. As organizações serão melhores quando, através da inovação e do pensamento estratégico se tornem mais fortes e mais independentes do que os cargos que, pontualmente, as administram e da intervenção direta ou indireta do poder executivo.

Assim serviremos melhor. Afinal tudo se resume a isso. Servir melhor.

Já agora, nos debates, não ouvimos nada disto.