Os confrontos em alguns bairros nos arredores de Lisboa vieram levantar o espantalho das elites que se afastaram do povo, como se isso fosse um fenómeno novo. Mas não é. As elites sempre viveram afastadas do resto da população e raramente sentiram as suas dores. Passaram por algumas, quanto a isso não haja a mínima dúvida, mas não as mesmas.

Há cerca de 6 anos escrevi sobre o tema, por ocasião da revolta dos coletes amarelos, em França. O assunto é, finalmente, debatido em Portugal e volta à baila agora que Donald Trump pode ser eleito presidente dos EUA pela segunda vez. Como refiro nesse texto de 2018, a tese da secessão das elites parte do princípio que existe uma franja privilegiada da população com acesso às melhores escolas, que vive nos melhores bairros e detém os melhores empregos que pagam os melhores salários que lhes permite viver numa realidade cosmopolita desfasada da dos restantes compatriotas. Assim, e enquanto a maioria da população vive nas grandes cidades e seus subúrbios, se desloca de transportes públicos ou perde horas no trânsito e passa férias em praias sobrelotadas (se é que vai de férias), uma minoria vive numa realidade completamente diferente, ao ponto de as suas preocupações terem mais em comum com as da elite de outros países ocidentais. De acordo com essa tese, um privilegiado em Paris teria mais em comum com um privilegiado em Londres, Nova Iorque, Roma ou Atenas que com os seus compatriotas franceses em Saint-Denis ou de qualquer pequena localidade no Ródano.

Sucede que, sendo verdade que há quem viva acima dos problemas dos simples mortais, não é verdade que que todos vivam afastados da maioria da população nem que os mais pobres estejam largados ao abandono sem quaisquer protecções sociais. O Estado francês, que usei a título de exemplo nessa crónica de 2018, é mais igualitário que nunca devido às prestações e protecções sociais que pratica. O mesmo se passa em Portugal em que as políticas de distribuição de riqueza (escalões do IRS, habitação social, pensões mínimas garantidas, escolas e acesso gratuito à saúde, sem contar com o emprego público, que é uma forma antiga de dar empregos e pagar ordenados a quem, caso contrário, estaria no desemprego) têm gradualmente reduzido as desigualdades.

Ora, se assim é qual a razão para tanta celeuma? A resposta divide-se em três partes. Primeira, no velho vício marxista de acreditar que se uns ganham há quem tenha de perder. Se a globalização retirou povos da pobreza é porque empobreceu outros. E essa tendência não funciona apenas entre estados; divide também comunidades. Ao ponto de, dentro de cada país, uns ficarem mais ricos enquanto outros, necessariamente, ficam mais pobres. A segunda advém da insegurança que as alterações tecnológicas e geoestratégicas provocam nas populações ocidentais, derivada das alterações forçadas na indústria e nos empregos. A terceira explicação reside no endividamento excessivo que leva à incapacidade dos poderes políticos e económicos em discernirem as melhores soluções e em se decidirem pelos investimentos necessários. A dívida gera medo e instala receio nas sociedades mais inovadoras, torna os estados incapazes de manter serviços de qualidade, empresas com dificuldades em inovarem por falta de capital, além de ser um peso desmesurado que os contribuintes carregam às costas. O endividamento gera estagnação e o crescimento económico, o pouco que ainda há, é fruto de consumo e de mais dívida. Este é o problema que afecta as economias mais desenvolvidas e dentro de uns anos afligirá países como a China.

Esta realidade é bastante evidente em Portugal e reflecte-se no modo como se procuram encontrar válvulas de escape para as tensões que se acumulam, como se viu no caso dos últimos distúrbios na região de Lisboa. Estes têm por base a suspeição de racismo da polícia contra um cidadão cabo-verdiano que vivia em Portugal há 20 anos. Ora, não há nada de novo nisto. Há décadas que existe esta suspeição de racismo contra a comunidade cabo-verdiana. Não é de agora. Não tem nada a ver com o tema da nova imigração que assola a Europa. É um assunto intrinsecamente português e com muitos anos. Já existia e era conhecido nos anos 80. Mas nessa altura o país estava entusiasmado com a adesão à CEE e surfava a onda do desenvolvimento e do crescimento económico. Nessa época também havia elites e também existia o resto da população. E as preocupações respectivas não eram idênticas. A diferença é que na altura estávamos todos no mesmo barco e havia temos para definir o rumo a seguir. A dívida era baixa e a margem para investir, imensa. Isso foi que mudou. Nada mais. É por isso que acreditar noutra coisa em Portugal é querer criar uma realidade paralela que disfarça e justifica discursos populistas que mais não são que a aplicação de uma receita cujo prazo de validade já passou.

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