1 Inúmeras críticas têm sido dirigidas à campanha eleitoral em curso, sobretudo aos debates televisivos. Ou porque foram demasiado curtos, ou porque os problemas fundamentais do país não foram abordados, ou porque os desafios europeus e mundiais estiveram ausentes. Sem negar necessariamente algumas dessas críticas, gostaria de enfaticamente contrariar o seu sentido geral.

Pela minha parte, gostaria de saudar o sentido de civilidade liberal-democrática e não-revolucionária que presidiu à generalidade dos debates televisivos. E gostaria de enfatizar que essa atmosfera não-revolucionária deve ser orgulhosamente assumida por todos os que prezam a liberdade ordeira sob a lei.

2 O ponto crucial a sublinhar, creio, é que, na generalidade dos debates televisivos, os interlocutores rivais assumiram que estavam genuinamente a apresentar argumentos com vista a persuadir os eleitores — isto é, assumindo um debate leal num sistema eleitoral leal. Por outras palavras, não houve, que eu me recorde, acusações de que o ‘sistema’ ou o ‘regime’ impede o debate livre e a escolha livre entre propostas e partidos rivais.

Poderá ser dito que este ponto a que chamo ‘crucial’ não é surpreendente numa democracia liberal. Certamente não é, ou não deveria ser, surpreendente. Mas é um ponto seguramente em contraste com o clima tribal que estava a ser vivido antes da abertura da campanha eleitoral. Vários partidos e, sobretudo, inúmeros comentadores, falaram (e muitos ainda falam) do “regime oligárquico”, do “sistema corrupto”, e/ou do “colapso da democracia”. Discursos semelhantes são hoje infelizmente frequentes em democracias ocidentais tragicamente contaminadas por tribalismos terceiro-mundistas (inesquecivelmente celebrizados pela patética figura do General Tapioca nos inesquecíveis livros de Tintin).

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3 Sintomática e saudavelmente, esses discursos estiveram ausentes da generalidade dos debates partidários na televisão. Isto significa, fundamentalmente, que a generalidade dos líderes partidários aceitou as regras não-revolucionárias e não-tribais que distinguem as democracias do livre Ocidente.

E deve anda ser enfaticamente sublinhado o exemplar não-protagonismo do Presidente da República durante toda a campanha eleitoral. Este comportamento exemplar reforçou e sublinhou o seu papel constitucional de garante das regras democráticas e de Presidente de todos os Portugueses.

Acresce que esta atmosfera não-revolucionária e não-tribal foi também corroborada pela evolução nas sondagens eleitorais. É certo e seguro que a única sondagem que conta é o resultado final da votação dos eleitores no dia 30 de Janeiro. Mas o facto de estar a existir uma flutuação nas sondagens corrobora a confiança demo-liberal na importância do debate civilizado entre argumentos rivais e concorrentes.

Por outras palavras, não há um ‘sistema’ ou ‘regime’ ‘oligárquico’ que controla os resultados. Os resultados genuinamente resultam das escolhas dos eleitores e existe um debate livre e leal entre os candidatos para tentar influenciar essas escolhas.

4 Este aparentemente simples contraste entre uma visão procedimental da democracia e uma visão tribal-conspirativa exprime um dualismo bastante mais profundo entre dois conceitos de democracia. Basicamente, distingue um entendimento da democracia como sistema de regras gerais de boa conduta sob as quais concorrem diferentes propostas rivais versus um regime definido por um plano final de alegada perfeição (de esquerda ou de direita).

Ralf Dahrendorf (1929-2009) — entre muitos outros autores liberais, democráticos e não-revolucionários desde pelo menos Edmund Burke (1729-1797) — sublinhou repetida e insistentemente a importância crucial da distinção entre estes dois conceitos de democracia. Numa passagem célebre na célebre palestra (sintomaticamente intitulada ‘Must Revolutions Fail?’) que proferiu em Londres, a 15 de Novembro de 1990, celebrando a queda do Muro de Berlim mas contrariando os sonhos de utopias revolucionárias ou/e contra-revolucionárias pós-comunistas, disse Dahrendorf:

“Democracia. Nenhuma outra palavra resume melhor os sonhos dos revolucionários na Europa e noutros lugares nos últimos 200 anos. […] Mas democracia tem dois significados inteiramente diferentes. Um é constitucional, um arranjo através do qual é possível substituir governos sem revolução, através de eleições e de parlamentos eleitos. O outro significado é muito mais fundamental: a democracia deve ser autêntica; o governo deve ser devolvido ao povo; a igualdade tem de ser real. Este é o sonho de Rousseau de uma volonté générale que inspirou os revolucionários franceses em 1789, uma vontade geral que misteriosamente levaria todos a concordar sem recurso à força ou ao constrangimento”.

Este segundo entendimento ‘fundamental’ (no sentido de ‘fundamentalista’) da democracia, prosseguiu Dahrendorf, simplesmente não é compatível com a preservação da liberdade, do pluralismo e da convivência pacífica e civilizada entre pontos de vista e de modos de vida diferentes. Conduziu a ‘excitantes’ revoluções autoritárias, de extrema-esquerda e de extrema-direita, contra a ‘tranquilidade aborrecida’ das democracias pluralistas, burguesas e parlamentares.

5 Este dualismo entre dois conceitos de democracia e de revolução é seguramente um tema fundamental da Teoria Política moderna e contemporânea. É aliás o tema da segunda edição do Seminário académico sobre “Seis Revoluções da Era Moderna (Inglesa, Americana, Francesa, Brasileira, Soviética e Portuguesa)” que o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e o Labô da Universidade Católica de São Paulo vão retomar on-line a partir de 10 de Fevereiro. O mesmo tema também acaba de ser aprovado pela Fundação norte-americana Liberty Fund para o seu seminário anual no Hotel Palácio do Estoril, em Junho.

6 Voltarei seguramente a este tema. Mas, de momento, apenas gostaria de saudar a atmosfera de civilidade liberal, pluralista e não revolucionária da campanha eleitoral entre nós. E de apelar a que votemos certeiramente nas eleições — isto é, em liberdade e em consciência. Isto é, também, com o orgulho tranquilo de vivermos numa democracia liberal, sem opressão revolucionária nem contra-revolucionária.