Já tudo terá sido dito sobre as eleições de 30 de Janeiro. Ainda assim, talvez valha a pena revisitar alguns aspectos marcantes.

1 Em primeiro lugar, não é certamente de somenos recordar a elevada e ordeira participação eleitoral, sobretudo no clima de pandemia que ainda vivemos. É um sinal inegável de civismo e de civilidade dos Portugueses — bem como da sua confiança no ‘sistema’ ou/e no ‘regime’ demo-liberal em que temos o privilégio de viver.

Convém recordar, a propósito, que foi este mesmo ‘sistema’ ou/e ‘regime’ que inúmeros panfletários terceiro-mundistas, de esquerda e de direita, insistiram em atacar.

Por outras palavras, o civismo demo-liberal dos Portugueses constituiu o pano de fundo crucial das eleições. Os resultados vieram naturalmente depois.

2 A maioria absoluta do Partido Socialista coloca-o sob acrescida responsabilidade.

Quer retomar a tradição socialista liberal de Mário Soares? Ou vai preferir retomar a retórica da “Frente de Esquerda contra a Direita”? A escolha será inteiramente dos socialistas.

Por outras palavras, já não há “geringonça” nem “ameaça da direita” para justificar retóricas de “Frentes Populares” — que, aliás, justiça seja feita, estiveram em boa parte ausentes da campanha eleitoral socialista. Em boa parte também, creio que a campanha moderada dos socialistas, liderada vincadamente por António Costa, terá contribuído para a sua significativa vitória ao centro-esquerda, com o histórico declínio dos partidos da esquerda radical — em meu entender muito bem-vindo, ainda que tardio.

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3 Um desafio semelhante, embora simétrico, irá colocar-se ao espaço político da oposição democrática não-socialista, ou do democrático centro-direita — sobretudo o PSD, mas também o CDS, cuja perda de representação parlamentar constitui, em meu entender, a pior notícia destas eleições, tratando-se de um partido fundador da nossa democracia liberal.

Diferentemente da generalidade dos analistas, não creio que o segundo lugar do PSD tenha ficado a dever-se ao facto de não se apresentar como “a direita”. Não me recordo de que Sá Carneiro, ou Adelino Amaro da Costa, ou Aníbal Cavaco Silva alguma vez se tenham apresentado prioritariamente como tal. Mas todos eles se apresentaram com programas vincadamente alternativos ao estatismo de inspiração socialista e profundamente favoráveis a uma economia de mercado de matriz europeia e ocidental. “Libertação da sociedade civil” foi uma das mais distintivas mensagens da oposição democrática não-socialista.

Não estou seguro de que o PSD ou o CDS tenham apresentado uma clara alternativa ao estatismo de inspiração socialista — seguramente não comparável às alternativas apresentadas por Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e Aníbal Cavaco Silva. (De certa forma, terá sido a Iniciativa Liberal a apresentar mais vincadamente ideias inovadoras a favor da economia de mercado e de empresa livre — o que certamente contribuiu para estimular e elevar o debate eleitoral).

4 Vale a pena, no entanto, voltar à questão crucial da ilusória dicotomia entre “Frente de Direita vs. Frente de Esquerda”. E vale a pena recordar que Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Freitas do Amaral, Aníbal Cavaco Silva e — já agora — Mário Soares nunca subscreveram essa ilusória dicotomia entre “Frente de Direita vs. Frente de Esquerda”. Por outras palavras, apresentaram-se como forças modernizadoras, hostis à dicotomia primitiva entre “Frente Contra-Revolucionária vs. Frente Revolucionária”, que tristemente marcou os anos 1920/30 na Europa continental.

Em rigor, Mário Soares, Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Freitas do Amaral, e Aníbal Cavaco Silva — e, já agora, António Guterres, Marcelo Rebelo de Sousa e Durão Barroso — partilhavam uma visão euro-atlantista e não terceiro-mundista sobre o civilizado conflito político nas democracias liberais: basicamente entre direita liberal-democrática vs. esquerda liberal-democrática — e não simplesmente entre “frente de direita” vs. “frente de esquerda”. Por outras palavras, todos eles entendiam que a direita liberal-democrática  e a esquerda liberal-democrática se distinguiam e opunham naturalmente à direita radical e à esquerda radical.

5 Não é possível exagerar a importância crucial desse comum entendimento liberal-democrático entre os rivais centro-direita e centro-esquerda. Foi esse comum entendimento liberal-democrático que permitiu pôr fim ao arcaísmo terceiro-mundista do PREC, fundado na patética dicotomia entre “fascismo ou revolução” — um eufemismo revolucionário para a dicotomia entre “frente de direita vs frente de esquerda”.

Mais importante ainda, o comum entendimento liberal-democrático entre os rivais centro-direita e centro-esquerda pós 25 de Abril permitiu a restauração da democracia liberal em 25 de Novembro de 1975. E, mais profundamente ainda, exprimiu e consagrou a ruptura intelectual com o triste arcaísmo da I e da II Repúblicas entre nós — isto é o jacobinismo autoritário da I República e o atavismo autoritário do chamado ‘Estado Novo’.

Estes tristes arcaísmos eram tristemente conhecidos na Europa demo-liberal como “arcaísmo ibérico”. Foi imenso mérito de Mário Soares, Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Freitas do Amaral e Aníbal Cavaco Silva — bem como, já agora, António Guterres, Jorge Sampaio, Marcelo Rebelo de Sousa e Durão Barroso — quererem definitivamente romper com esse arcaísmo e definitivamente entrar no clube democrático europeu.

Seria útil recordar hoje estas escolhas decisivas. E talvez não fosse deslocado exprimir um certo ‘snobismo liberal-democrático’ relativamente aos panfletários terceiro-mundistas que insistem em retomar a retórica terceiro-mundista do “arcaísmo ibérico”.

Post scriptum: Jubileu de Platina. Completaram-se ontem, domingo 6 de Fevereiro, 70 anos de reinado de Isabel II. Voltarei certamente a este tema com mais detalhe, mas gostaria desde já de recordar o sentido de honra, de dever, de serviço, de moderação e de imparcialidade que sempre tem caracterizado o seu reinado.

Isabel II tem simbolizado acima de tudo a ancestral civilidade da democracia liberal britânica, inesquecivelmente celebrizada nas palavras da historiadora americana Gertrude Himmelfarb, parafraseando o historiador francês Elie Halévy: “O verdadeiro ‘milagre da Inglaterra moderna’ não é que ela tenha sido poupada à revolução, mas que tenha assimilado tantas revoluções — industrial, económica, social, política, cultural — sem recurso à Revolução.”

O austro-britânico (Sir) Karl Popper gostava de argumentar que, no centro desse “mistério Britânico não-revolucionário” estava o sentido de “gentlemanship”. Dizia ele que “gentlemanship” queria dizer que cada pessoa não se levava demasiado a sério, mas estava preparada para levar muito a sério os seus deveres — sobretudo quando, à sua volta, a maioria tendia apenas a reclamar os seus direitos.

Foi com muito agradável surpresa que li no Daily Telegraph de Londres que o Arcebispo de Canterbury prestou à Rainha um tributo muito Popperiano: “Ela toma os seus deveres muito a sério, mas nunca se toma a si própria demasiado a sério. […] ’Não é acerca de mim própria’ quase resume o seu reinado.”