1 Logo depois de (no art. 1.º) a Constituição da República Portuguesa ter declarado que «Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana…», o art. 2.º impõe que «A República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático…».
Um Estado de Direito Democrático é aquele que, primeiro e directamente, respeita o Direito inato e universal. Isto é, aquele Direito que, segundo as expressões do Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é reconhecido pela «consciência da Humanidade», e se baseia na «fé nos direitos fundamentais do homem [e] na dignidade e no valor da pessoa humana». Estado consequentemente respeitador da Democracia, porque esta é, por definição, exercício, pelos cidadãos, do Direito inato e universal baseado na dignidade da pessoa humana e nos inatos e invioláveis direitos e deveres humanos-pessoais.
É esta Democracia de todas as pessoas do Povo e respeitosa dos direitos humanos que legitimamente estabelece e impõe a Constituição, na qual se cria e é regulado o órgão de poder político chamado Estado de Direito Democrático.
Assim fica clara a sujeição do «Estado de Direito Democrático» ao Direito e à Democracia.
E é isto o que a Constituição diz expressamente, no art. 3.º: «A validade das leis e dos demais actos do Estado, das Regiões Autónoma, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição». O que é confirmado no art. 277.º: «São inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados».
2 Ora, está claramente imposto no art. 43.º da Constituição que «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas».
Esta é uma proibição absoluta, porque exclui «quaisquer directrizes» [sic]. Se assim proíbe todas as directrizes, nem precisava de exemplificar directrizes proibidas. Aliás, quando a Constituição diz que o Estado não pode programar a educação «segundo quaisquer directrizes políticas», esvazia todas as possíveis razões ou directrizes de programação educativa do Estado. Porque não se pode imaginar nenhuma programação estadual que não tenha uma directriz política. O Estado, órgão constitucional de poder político, actua sempre politicamente, por definição. Pelo que é forçoso concluir que, se o Estado não pode programar a educação «segundo uma qualquer directriz política», então não pode programar a educação de modo nenhum. Pura e simplesmente não pode programar. É óbvio.
3 Tal interpretação é lógica e razoável. E é muito significativo que não tenha sido expressamente criticada por ninguém. Em vez disso, prefere-se revogar a proibição do art. 43.º pelo esquecimento.
Em Portugal, os defensores de uma educação escolar unicitária e obrigatória através do monopólio estatal da «escola pública» (que apenas tolera as escolas civis numa discriminação negativa, e mesmo assim obrigadas a seguir o projecto educativo escolar obrigatório de programação estatal) omitem qualquer comentário sério e profundo sobre esta questão constitucional. E refugiam-se na interpretação literal do art.º 75.º, que se refere apenas ao dever de o Estado criar «estabelecimentos escolares», e não de programar a «educação» — coisas que são muito diferentes, como define a Lei de Bases do Sistema Educativo, quando, logo no seu artigo 1.º, distingue a «acção educativa» dos «recursos materiais» (sic) do sistema educativo, nos quais inclui expressamente os estabelecimentos escolares. Será também por isso que ninguém invoca este regime da Lei de Bases. É óbvio que qualquer cidadão, por interesse empresarial ou por generoso mecenato, pode criar um estabelecimento escolar e até uma rede escolar, desde que cumpra as regras legais necessárias; mas esse poder não lhe confere automaticamente o legítimo poder de educar nesses estabelecimentos. Porque é que haveria de ser diferente para o Estado, quando cria estabelecimentos escolares cumprindo o art. 75.º?
Porque é que, para o art. 75.º, fazem uma interpretação literal e primária, confundindo estabelecimentos escolares com acção educativa; mas não fazem uma interpretação também literal para a proibição do art. 43.º? E preferem ignorar completamente esta proibição?
De tal modo que nem sequer são sensíveis ao argumento da necessidade de uma interpretação constitucional sistemática, contextualizada, que não pode ignorar a proibição de programar a educação que o art. 43.º impõe ao Estado.
4 E não se pense que a interpretação sistemática (contextualizada) que defendemos impede que o Estado exerça plenamente a sua importante função de garantia e de apoio social à educação, designadamente ao ensino escolar. Função que está desenvolvidamente explicitada na Constituição e na Lei de Bases do Sistema Educativo, uma lei de valor reforçado que rege toda a legislação ordinária sobre a educação. Designadamente garantindo uma rede suficiente de estabelecimentos escolares (como manda o art. 75.º CRP), devidamente equipados (como manda a Lei de Bases, no seu capítulo quinto, dedicado aos «recursos materiais»), financiando a gratuitidade do ensino a todos sem discriminação (como diz o art. 74.º da Constituição, norma esta que também é desprezada), pelo menos do ensino obrigatório, e apoiando socialmente, sem discriminação negativa, as famílias e os alunos através de medidas de «acção social escolar», como diz a Lei de Bases.
Porque é óbvio que são inconstitucionais quaisquer discriminações negativas, nos apoios de Estado às legítimas e fundamentais liberdades pessoais de educação, iguais em todos os cidadãos, porque violam o princípio da igualdade. As liberdades pessoais fundamentais de aprender e de ensinar, as liberdades pessoais de escolha de projecto educativo, os direitos aos apoios de Estado na educação, todos são iguais para todos. Não toleram discriminações negativas baseadas num arbitrária distinção entre estabelecimentos escolares, igualmente legítimos entre si.
5 Tanto quanto se sabe pela bibliografia e pelas sentenças dos Tribunais publicadas, a nossa Constituição Educativa, isto é, o nosso regime constitucional sobre a educação, está por estudar e aplicar a fundo e com rigor pelos nossos jurisconsultos e magistrados. Salvo algumas poucas e muito honrosas excepções, que não abalam o monolitismo da omissão geral. Basta comparar com o que se passa em Espanha e em Itália, para só citar dois exemplos de países mais próximos de nós.
E porquê? Porque, salvo em casos excepcionais e efémeros (que nem por isso merecem ser esquecidos), ninguém contesta expressa e persistentemente a nossa já velha tradição jacobina de um monopólio de ensino escolar de Estado. Foi assim desde o Marquês de Pombal, que extinguiu todo o ensino privado. Foi assim, e ferozmente, no republicanismo jacobino. Foi assim no Estado Novo, que tolerou juridicamente escolas privadas, mas a quem nunca deu qualquer apoio nem sequer reconhecimento oficial ou paralelismo pedagógico — os alunos que frequentavam as escolas privadas tinham de ir fazer exames nas escolas públicas, para reconhecimento oficial do seu progresso escolar. E foi assim na primeira versão da Constituição de 1976, em que se atingiu o máximo esplendor desta iníqua tradição, impondo-se, no art. 75.º, que o ensino privado só seria admitido como supletivo do ensino de Estado.
Foi em 1982, na primeira revisão constitucional, que se expurgou esta lamentável cláusula contra as liberdades de educação dos cidadãos. De modo que, desde há mais de duzentos anos para cá, até 1982, tivemos sempre um regime legal de monopólio público estatal de educação escolar. Será talvez, para alguns, tempo suficiente para se poder decretar um direito consuetudinário? Que nem a revisão de 1982 revogou, porque, mesmo depois dessa revisão constitucional, continuou tudo na mesma, praticamente? Até hoje. Quando o Ministro da Educação impõe autoritariamente, por uma coacção injusta e pseudo-legal, a educação escolar política da maioria parlamentar à legítima e constitucional liberdade de educação da Família Mesquita Guimarães, que é intocável pelas maiorias parlamentares. E isto — note-se bem —perante a actual pasmaceira política geral dos partidos democráticos e da Sociedade Civil, ocupados com outros seus interesses, e a colaboração dos Tribunais que recusam a esta Família uma providência cautelar perante a ameaça de violação dos seus direitos fundamentais. Porque não se trata de uma banal questão administrativa, mas sim de direitos humanos. E os Tribunais não podem permitir que estes direitos possam ser violados enquanto se discute o seu reconhecimento pelos Tribunais.
6 Suponhamos que, no termo de uma longa batalha judicial do Estado contra a Família Mesquita Guimarães, o nosso Tribunal Constitucional — ou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a que Portugal está sujeito — vem decidir finalmente que o Estado não pode impor como obrigatória para as Famílias uma disciplina de educação das crianças «para a cidadania e o desenvolvimento», que integra questões cívicas e morais de cuja orientação reclamam a sua orientação contra a da escola, ainda mesmo que esta se diga neutra, porque uma educação neutra é uma educação contrária a outras opções educativas que não são neutras.
7 Sustentamos que o direito da Família Guimarães é inequívoco.
É inequívoco o primacial direito de os pais escolherem «o género de educação para os seus filhos», tal como diz expressamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 26º: «Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos».
É inequívoco que o art. 68.º da nossa Constituição diz expressamente que a acção educativa dos pais é «insubstituível», quando o Estado apoia as famílias na sua missão de educar os filhos.
É inequívoco que, na matéria em causa, a nossa Lei de Bases do Sistema Educativo teve o cuidado de declarar especialmente (porque não diz o mesmo para outras disciplinas escolares) que, na «educação cívica e moral», o objectivo do ensino básico não pode ir além de «proporcionar [o que não é o mesmo que impor] em liberdade de consciência [o que não é obrigar absolutamente] a aquisição de noções de educação cívica e moral». Será preciso aqui alegar objecção de consciência? Claro que não é.
É inequívoco que a Convenção dos Direitos da Criança — vigente em Portugal com força superior à legislação que regulamenta a disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento — impõe que «a criança tem o direito de conhecer os seus pais e de ser educada por eles» (art. 7.º). E não diz que a criança tem o direito de conhecer o Estado e de ser educada por ele. Pelo contrário, o que diz, agora no art. 5.º, é que «Os Estados Partes respeitam as responsabilidades, direitos e deveres dos pais e, sendo caso disso, dos membros da família alargada ou da comunidade nos termos dos costumes locais, dos representantes legais ou de outras pessoas que tenham a criança legalmente a seu cargo… ». Insistindo ainda bem claramente no mesmo princípio, nos termos do art. 18.º: «A responsabilidade de educar a criança e de assegurar o seu desenvolvimento cabe primacialmente aos pais…». Pode haver duas autoridades contraditórias para se educar uma criança? Seria esquizofrénico.
É inequívoco porque a própria criança tem direito de opinião pessoal, sobre a sua educação escolar, como lhe garante a Convenção dos Direitos da Criança, assim: «A criança tem o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre questões que lhe digam respeito, e [tem o direito] de ver essa opinião tomada em consideração». Ora, esta opinião não é respeitada no ensino do Estado, em Portugal. E não se diga que é questão de consultar a opinião política do povo. Não; é questão de direitos e deveres pessoais, que só cada um exerce a seu próprio respeito.
É inequívoco porque o nosso Código Civil diz as seguintes coisas: «Os filhos estão sujeitos às responsabilidades parentais até à sua maioridade» (art. 1877.º); «Compete aos pais, no interesse do filhos […] dirigir a sua educação…» (art. 1878.º); «Pertence aos pais decidir sobre a educação religiosa dos filhos menores de dezasseis anos» (ar. 1886.º).
É inequívoco que o constitucionalismo moderno, baseado na dignidade e nos direitos e deveres das pessoas humanas — que são inatos, invioláveis, inalienáveis e irrenunciáveis — não admite que os Estados possam opor obrigatoriamente aos legítimos e diferentes projectos educativos dos pais, um outro e único projecto educativo político seu — ainda que, como já se disse, alegue ser cívica e moralmente neutro. Porque, insistindo, um projecto educativo neutro, se for obrigatório, é um projecto educativo contra os outros vários projectos educativos legitimamente não-neutros dos pais. Uma efectiva educação política neutra não é uma neutralidade educativa; é um efectiva educação positiva, frontalmente alternativa dos projectos educativos que rejeitam a neutralidade educativa.
8 Retomando o que vínhamos dizendo: suponhamos que — no termo de uma longa batalha judicial do Estado contra a Família Mesquita Guimarães —, o nosso Tribunal Constitucional ou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, vem decidir finalmente que o Estado não pode impor como obrigatória para as Famílias uma disciplina obrigatória (e ainda por cima sujeita a prova de conhecimentos), de educação infantil «para cidadania e o desenvolvimento» que integra questões cívicas e morais que são do foro das liberdades de consciência e dos direitos de personalidade, como por exemplo sobre o comportamento sexual dos humanos, que é sem dúvida uma questão moral e religiosa.
Pergunta-se. Nessa altura, que terá acontecido aos filhos Mesquita Guimarães, reprovados ilegalmente por vários anos sucessivos na sua carreira escolar do ensino obrigatório, e fortemente traumatizados pela querela pública escandalosa de que foram alvo durante anos e anos a fio? Sabe-se lá.
Se os Pais, aliás com a concordância dos filhos, não desistirem de resistir a este abuso educativo do actual Ministro da Educação, e a querela judiciária levar anos e anos, como é costume, talvez os filhos Mesquita Guimarães nem venham a conseguir completar em tempo útil a sua escolaridade obrigatória. E tenham que iniciar uma vida adulta e profissional em condições legais de semianalfabetos. É muito caso de perguntar: a que indemnizações morais e outras terão direito, perante o Estado Português (e as suas magistraturas), a título de uma (ainda que pobre) compensação?
9 A função constitucional de o Estado Português garantir e apoiar os direitos e deveres humanos de educação, pode-se resumir no dever de garantir o exercício das liberdades de educação contra todas as oposições; e complementarmente proporcionar a todos os cidadãos uma igualdade de oportunidades para a sua educação em liberdade pessoal, cumprindo fielmente o art. 74.º da Constituição, que diz assim: «Todos têm direito ao ensino, com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e de êxito escolar».
Ora, note-se bem, direito à «igualdade de oportunidades» é direito às várias oportunidades, no plural; não é direito apenas à única oportunidade programada pelo Estado. Esta igualdade numa única oportunidade oferecida pelo Estado (entre nós na chamada «escola pública») é típica da concepção dos Estados totalitários, que combatem o pluralismo democrático educativo; e não do constitucionalismo humanista da DUDH e da nossa Constituição. Toda a gente sabe que só os governos autoritários e totalitários querem dominar politicamente a educação das crianças, para em consequência programarem a Sociedade Civil do futuro. Os Estados liberais não pressionam política e administrativamente os sistemas educativos.
10 Para concluir, apraz-nos citar, sobre esta magna questão, uma das vozes mais independentes e enérgicas do nosso tempo, aliás de um prestigiado docente universitário em Sociologia: António Barreto. Seleccionando apenas duas das suas muitas afirmações públicas nesta matéria.
Primeira citação. «A disciplina de “Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento” é uma armadilha e um tremendo equívoco. Tal, aliás, como outras variedades de que se fala com frequência: Educação para a Saúde, Educação para um Ambiente sustentável, Educação para a Saúde reprodutiva e Educação para a Igualdade. Ao abrigo dos melhores sentimentos, estamos em pleno delírio de ideologia e propaganda, ou antes, de manipulação e intoxicação. […] Sempre os déspotas sonham com a educação e a formação das jovens gerações!» (jornal “Público” de 13-09-2020.
Segunda citação. «Experimentem uma escola de comunidade, em oposição à escola do Estado, uma escola autónoma, por contraste com a escola dependente do sistema. Deixem a exigência e a meritocracia desenvolver-se nas escolas que o queiram. Deixem as escolas e as comunidades locais lutar contra a complacência. Deixem as escolas ser responsáveis. Estou convencido de que, dessa maneira, algumas escolas, muitas escolas, poderiam melhor dar conta do recado» (Comunicação ao Conselho Nacional de Educação, Situação nacional da literacia. Actas do Seminário, CNE, 1996).
(continuação em próximo artigo)