1 O sr. Trump finalmente anunciou que sairá da Casa Branca na manhã da próxima quarta-feira, 20 de Janeiro, e que não estará presente na cerimónia de tomada de posse do presidente-eleito Joe Biden. Entretanto, o vice-presidente cessante, Mike Pence, honrosamente já garantiu que estará presente. Ainda assim, não está excluída a possibilidade de novos distúrbios violentos, à semelhança do vergonhoso ataque ao Capitólio por revolucionários andrajosos, no passado dia 6 de Janeiro.
Não se trata de um assunto menor. A conduta do sr. Trump configura uma violação maior das regras e tradições da democracia liberal — e não só da norte-americana. Essa violação é intolerável. E é ensurdecedor o silêncio de tantos habituais admiradores do sr. Trump — lá fora e também entre nós — acerca da intolerável conduta revolucionária e anti-institucional do sr. Trump.
2 Pode por isso ser útil repetir aqui alguns passos elementares da Teoria Política sobre a democracia moderna. Como venho repetindo há muito tempo — aqui e em outros lugares — a democracia não é um regime revolucionário. Não é o regime de uma causa boa (por exemplo a do povo, ou da igualdade, ou da fraternidade, como pretendia a funesta revolução francesa de 1789). A democracia, naquelas culturas políticas que a souberam preservar, não é o regime de causas, nem das facções que subscrevem causas particulares — que obviamente defendem como boas, e usualmente como as únicas boas.
A democracia é, simplesmente, o regime da regra. Foi exactamente assim que os princípios da Magna Carta de 1215 foram restaurados na chamada Revolução Gloriosa inglesa de 1688 — uma revolução liberal e conservadora que expressamente definiu como seu objectivo “tornar desnecessárias mais revoluções”. Por isso restaurou o principio da soberania do rei no parlamento, uma forma elegante e não revolucionária de estabelecer a soberania do parlamento, sem hostilizar a monarquia.
E é por ser o regime da regra que a democracia liberal constituiu o único regime até agora conhecido que permite a concorrência e alternância pacíficas entre causas rivais. Foi por isso que o monárquico-conservador-liberal Winston Churchill, anti-nazi e anti-comunista, disse memoravelmente no Parlamento britânico, em plena II Guerra: “a democracia é o pior regime, com excepção de todos os outros”.
3 Tudo isto pode ser aprendido em estudos elementares de Teoria Política — naqueles lugares afortunados em que a Teoria Política possa ainda ser estudada, e distinguida da propaganda revolucionária, da esquerda ou da direita.
Tive o grato privilégio de estudar Teoria Política em Oxford, sob orientação de dois consagrados teóricos da democracia liberal: Karl Popper e Ralf Dahrendorf. Acresce que ambos tinham vivido o colapso das democracias liberais no continente europeu nas décadas de 1930 e 1940. Esta dimensão pessoal não deve ser menosprezada — e eles sempre fizeram questão de me recordar, muito enfaticamente aliás.
Karl Popper (1902-1994) era austríaco e exilou-se na Nova Zelândia pouco antes da ocupação da Áustria pelas tropas nazis, em 1938. Ralf Dahrendorf (1929-2009) era alemão e foi preso pelos nazis quando tinha 15 anos — simplesmente porque era crítico do nazismo e seu pai era líder social-democrata. Seu pai, aliás, foi também preso pelos nazis e, depois da derrota nazi, pelos comunistas. O motivo foi o mesmo: foi preso pelos nazis porque não era nazi e pelos comunistas porque não era comunista.
4 Popper e Dahrendorf viriam, após a II Guerra, a estudar e viver em Inglaterra. Ambos adoptaram orgulhosamente a cidadania britânica. Viriam a receber ambos o título de Sir (Dahrendorf viria mesmo a integrar a Câmara dos Lordes como Lord Dahrendorf of Clare Market). Ambos dedicaram uma boa parte da sua vida intelectual à reflexão sobre o chamado “milagre da democracia britânica”: por que motivo conseguiu a democracia liberal britânica fazer todas as revoluções (económica, cultural, política) desde 1688, sem nunca recorrer à Revolução?
Ambos basicamente chegaram a conclusões semelhantes (Dahrendorf aliás foi aluno de Popper na LSE, logo após a II Guerra, da qual viria a ser Reitor entre 1975 e 1985). Essas conclusões apontam para a importância crucial da distinção entre regras gerais de funcionamento ou boa conduta, em contraste com objectivos ou políticas específicas e particulares.
5 Dahrendorf distinguiu enfaticamente “política constitucional” de “política normal”. A rivalidade sobre políticas específicas não pode ser confundida com o ataque às regras constitucionais que garantem e protegem a liberdade ordeira de rivalidade entre os programas partidários específicos.
Karl Popper acentuou a relação entre respeito pelas regras da democracia e a misteriosa reverência britânica pelas normas gerais de conduta da ‘gentlemanship’. Daí terá emergido a sua crítica à televisão, por alegadamente estar a substituir a clássica ética gentlemanly de auto-controlo pela pós-moderna “self-expression”. (Posso simplesmente alvitrar que Popper poderia ter visto no televisivo sr. Trump uma corroboração da sua crítica ao relativismo niilista e revolucionário da televisão).
Em suma, no centro dos argumentos de ambos estava a ideia de respeito pelas regras gerais da democracia constitucional.
6 Estas reflexões poderão ter alguma incidência entre nós. Na campanha presidencial em curso, observamos sinais preocupantes: três candidatos da chamada esquerda querem proibir o partido de um candidato rival. E este candidato rival (cujo nome de momento me escapa) comporta-se em público com uma agressividade e má-criação que qualquer pai (ou mãe) condenaria num filho (ou filha) seu. Em suma, todos eles ignoram as regras gerais de boa conduta que a experiência tem associado às democracias liberais duradouras.
Deve ser reconhecido que três outros candidatos presidenciais se têm distinguido daquelas condutas tribais. Vitorino Silva exprime uma saudável voz popular — que deve sempre ter voz numa democracia liberal. Tiago Mayan dá voz a uma disposição liberal que faz muita falta na nossa cultura política. Mas, em meu modesto entender, é Marcelo Rebelo de Sousa quem claramente exprime a esperança da tradição demo-liberal entre nós: o regime da regra imparcial.