O ministro da Educação, em audição parlamentar, informou que mais de metade (55,6%) das turmas tem até 20 alunos. Porquê? Porque esse limite de dimensão de turma está previsto na legislação quando há alunos com “necessidades específicas”, o conceito que, desde 2018, substituiu as designadas “necessidades educativas especiais” associadas principalmente a alunos com deficiência. Ora, ninguém questionou as implicações de política pública que esta percentagem traduz. Se é efectivamente desejável que os alunos com maiores necessidades estejam em turmas menores, para potenciar o devido apoio à sua aprendizagem, há aqui um problema de escala que leva a questionar a aplicabilidade do conceito de “necessidades específicas”, assim como o risco operacional que representa num contexto de escassez de professores. Sobre isto, importa colocar duas perguntas desagradáveis, mas necessárias.

Primeira pergunta: será normal que mais de metade das turmas das escolas da rede pública tenham alunos sinalizados? De facto, ao sugerir que 55,6% das turmas tem alunos com “necessidades específicas”, o ministro está a admitir que o conceito é extremamente abrangente, de tal modo que cobre a maioria das turmas das escolas portuguesas. Antes, as “necessidades educativas especiais” estavam essencialmente suportadas numa condição clínica e, por isso, circunscritas a casos validados em entidades externas à escola. A partir de 2018, o governo optou por alargar o conceito a “barreiras à aprendizagem” que vão desde a deficiência até ao contexto socioeconómico, deste modo albergando um número muito superior de alunos e entregando às escolas o poder de sinalizar alunos. Perante o quadro actual e os números assumidos pelo ministro, no mínimo há que considerar uma de duas hipóteses: ou o conceito se revelou excessivamente abrangente (e a legislação deve ser revista), ou as escolas recorrem à sinalização de alunos de forma instrumental, para aumentar recursos através de mais turmas e mais professores — prática que a OCDE detectou em Portugal no passado.

Segunda pergunta: será esta gestão das turmas compatível com a actual escassez de professores? Dificilmente. Uma consequência da largura do conceito de “necessidades específicas” é que impõe a criação de mais turmas no sistema educativo. Nas palavras do ministro da Educação, só neste ano lectivo, as “necessidades específicas” dos alunos obrigaram à abertura de 4959 novas turmas — e, forçosamente, à contratação de novos professores para leccionar nessas turmas. Na teoria, soa bem. Na prática, soa improvável a médio prazo: eis uma pressão suplementar para o recrutamento de professores (que não existem) e que, mais cedo ou mais tarde, tornará inviável este modelo de “educação inclusiva”.

No período exigente que se vive, em que a escassez de professores já deixa alunos sem aulas e se prevê um agravamento da situação até 2030, com ainda mais professores a aposentarem-se anualmente e poucos novos professores a formarem-se, não se pode avaliar medidas de política pública sem olhar para os aspectos operacionais. E, no caso da “educação inclusiva”, as contradições são evidentes: quando já não consegue contratar professores suficientes para assegurar o funcionamento normal das aulas para todos os alunos, o Estado implementa medidas que alargam ainda mais as necessidades de recrutamento. Há aqui duas prioridades políticas legítimas, mas em sentido contrário e em colisão iminente: o Estado compromete-se em reforçar os recursos num contexto em que já faltam recursos para as escolas. Obviamente, tal como está, a situação é insustentável e levará a uma ruptura — que prejudicará desde logo as crianças com necessidades às quais os recursos falharão (como já falham) e, a curto ou médio prazo, obrigará à revisão das medidas em curso.

Tenho a certeza de que as alterações legislativas feitas desde 2018 no âmbito da “educação inclusiva” foram feitas com a melhor das intenções — alargar os apoios ao maior número possível de alunos. O meu ponto é que, pelos dados do próprio ministro, as medidas adoptadas parecem sofrer de incoerência interna e de insustentabilidade operacional. É estranho que, esta semana, se tenha realizado uma audição parlamentar sobre o tema da “educação inclusiva” (e esta legislação em concreto), sem que estas incoerências e riscos operacionais tenham sido abordados. Talvez porque, na política portuguesa, se opte preferencialmente por discutir casuisticamente os problemas, sem uma visão de conjunto, criando uma manta de retalhos de medidas conflituantes que, nas suas incoerências bem-intencionadas, vão aprofundando bloqueios do sistema educativo.

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