É português, ou pelo menos terráqueo? Está naturalmente excitadíssimo com o novo aeroporto de Lisboa? Quer saber tudo, tudo, tudo sobre o próximo grande desígnio nacional? Então veio ao lugar certo. Nos próximos parágrafos esclarecerei aos interessados e, espero, a mim mesmo, as dúvidas que tão gloriosa obra, à semelhança dos aviões, levanta.
Alguém disse que se discutiu muito a localização do aeroporto sem se discutir a necessidade. Ora essa: a necessidade, como os gostos, não se discute. O importante é lembrar que Lisboa precisa de substituir a Portela desde 1969, quando esta tinha 2 milhões de passageiros por ano e Marcelo Caetano criou o Gabinete do Novo Aeroporto de Lisboa, que se calhar continua em funções (é melhor alguém ir ver). Cinquenta e cinco anos depois, a Portela recebe 33 milhões de passageiros e, bem ou mal, lá vai bastando. Pelos vistos, no complexo universo da aeroportuária cabe sempre mais um, ou mais um milhão, ou mais 31 milhões. Quando a liderança é cautelosa, não há imprevistos.
Quanto à localização, o poder político também se mostrou irredutível ao longo deste meio século: o novo aeroporto de Lisboa seria sem dúvida em Alcochete. Ou na Ota. Ou em Rio Frio. Ou em Pegões. Ou no Poceirão. Ou em Apostiça. Ou em Alverca. Ou em Beja. Ou em Évora. Ou na Fonte da Telha. Ou em Porto Alto. Ou em algum sítio com nome esquisito e suficientemente distante de Lisboa. Quando a liderança é firme, não há hesitações.
Logo que o actual governo anunciou Alcochete, decisão por enquanto irreversível, festejei abundantemente. A seguir perguntei a uma pessoa do Sul onde é Alcochete. Na verdade, o topónimo não me era demasiado estranho. Enfim lembrei-me do ataque à academia do Sporting, vulgo o maior atentado terrorista em solo nacional. Parecendo que não, é capaz de ser uma ideia feliz. No estrangeiro, é comum cometer-se actos de terrorismo em aeroportos: nós cometemos aeroportos em lugares de terrorismo. Para cúmulo em cima de um campo de tiro e juntinho a duas localidades chamadas Sarilhos, Grandes e Pequenos. Quando a liderança é inovadora, não há acasos.
O prazo para a inauguração do novo aeroporto é igualmente claro: dez anos. Ou sete. Ou seis. Ou oito. Ou quinze. Por mim, concordo com qualquer data. Embora vá raramente a Lisboa (o que por coincidência farei este Sábado, a pretexto de um almoço), costumo ir de avião (idem), transporte que não usaria se me descarregassem perto do Montijo, onde não conheço ninguém. Porém, posso vir a conhecer nos próximos anos, período após o qual terei um aeroporto à disposição para fartas almoçaradas naquela região. Quando a liderança é precavida, não há fome.
Sobre os custos da empreitada para o contribuinte, eis uma agradável notícia: zero euros. Tirando os acessos (as “acessibilidades”), que devem ficar baratos, o novo aeroporto será, jura o governo, pago por inteiro pelas taxas aeroportuárias. Se consigo compreender, a ANA cobra as ditas taxas e obtém lucros anuais que rondam os 300 ou 400 milhões. O novo aeroporto custará seis mil milhões, ou uns doze mil milhões, se arredondarmos. Isso significa que a ANA abdicará dos seus ganhos durante vinte, trinta ou quarenta anos apenas para oferecer o “Luís de Camões” à nação. Quando a liderança é poupada, não há abusos.
A propósito de Camões, o novo aeroporto já nasceu baptizado. Pode-se, e deve-se, criticar a opção por um homem, caucasiano e, ao que consta, “cisgénero” e heterossexual. Mas a deficiência física compensa um bocadinho. De resto, antes o poeta que o general que combateu Salazar após servir o Estado Novo e que se mudou para os Aliados (da IIª Guerra, não do Porto) após cantar louvores igualmente poéticos e épicos ao Führer. E que, sendo homem, caucasiano, “cisgénero” e tal, nem sequer era zarolho. Quando o poder é visionário, não há discórdias.
E o ambiente? Além dos “estudos de impacto”, uma estimativa conservadora prevê que o novo aeroporto receberá 100 (cem) milhões de passageiros em 2050, o triplo dos actuais e uma quantidade de gente que, no mundo, só o aeroporto de Atlanta, por causa das escalas da Delta Airlines, alcançou. É uma surpresa. Eu estava convencido de que no futuro não haveria voos destinados a pelintras, ficando os céus reservados às sumidades que acorrem a cimeiras “climáticas” para explicar aos pelintras que as viagens aéreas são prejudiciais ao planeta. Manhoso, o governo aproveitou a distracção provisória da Pequena Greta e dos seus amigos, entretidos a libertar a “Palestina”, para avançar com o projecto. Quando o poder é astuto, não há obstáculos.
Como se não chegasse tamanha maravilha, a maravilha vem acompanhada de um TGV Lisboa-Madrid, que sai do Barreiro e talvez acabe em Évora ou Elvas, e de uma terceira ponte sobre o Tejo, com fortes hipóteses de ser construída sobre o Tejo e não sobre outro rio. Preço final do pacote? É fazer as contas, na certeza de que estas não afectarão a intensa alegria sentida neste momento por cada patriota autêntico, resida ele em Chelas ou em Chaves, em Alcochete ou em Aljustrel, no Barreiro ou em Barcelos. E ainda não saímos da fase dos anúncios: imaginem se um dia for a sério. Esclarecidos? Eu estou.