1 Cada instituição em Portugal (educação, saúde, justiça, forças de segurança; etc) tem duas a três situações críticas por ano que ocupam alternadamente a agenda da comunicação social por um período de uma a duas semanas. Exatamente pelo facto de serem situações críticas e alternadas entre sectores, são analisadas, as mais das vezes, na sua especificidade e como pontuais pelos comentadores de serviço. Mesmo quando há uma análise mais abrangente apenas se consegue ir até à necessidade de uma repetida, e já cansativa, reforma estrutural da política daquele sector em particular.

No entanto, o que tal significa é que há situações críticas em todas as instituições de base da nossa sociedade. E elas são, mais provavelmente, tipping points ou pontos de ruptura que evidenciam uma falha sistémica: ou seja, o que talvez possamos chamar uma realidade cansada, em exaustão. É essa realidade cansada que se torna necessário escavar. Os tipping points não são ocasionais ou aleatórios e, creio, que cada vez mais percebemos isso. Assim, sejam os incêndios; a fuga de reclusos; o furto de material militar; a morte de uma grávida a caminho de algures; a morte de jovens na recruta;  aluno esfaqueia que colegas e professores… devem ser entendidos como pontos de ruptura e sintomas de uma exaustão, resultantes de uma falha sistémica que se deixa ver 1) numa exaustão e um absurdo quotidianos instalados; 2) numa entropia dos sistemas organizacionais e institucionais; 3) em más políticas públicas ou sua não aplicação e, em última análise, 4) no jogo político e suas perversidades entendidas como normais.

2 A situação nas nossas instituições de base é de exaustão e de absurdo quotidiano. Tal revela-se de muitas formas.

A falta crónica de profissionais, sejam médicos, enfermeiros, professores, profissionais de segurança, militares, técnicos especialistas; a fuga de profissionais de uma instituição para outra; a fuga de profissionais do público para o privado; a fuga de profissionais para áreas abaixo das suas competências; a fuga de profissionais para o estrangeiro; a fuga de profissionais das áreas metropolitanas para pequenas cidades ou mesmo para o campo. Todas estas mobilidades em fuga revelam acima de tudo o cansaço. Mas elas também reforçam a exaustão pois diminuem a eficácias das instituições, levam à perda de competências instaladas, implicam novas socializações e tempos de aprendizagem.

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Um outro aspeto é uma crónica falta de recursos; a existência de recursos mas a sua não adequada disponibilização ou distribuição; uma distribuição de recursos sem relação direta com o esforço de trabalho, o mérito ou a produtividade. Por vezes mesmo uma clara ostensividade no uso de recursos em consumos/despesas supérfluas (por exemplo, com o objetivo concreto do marketing, propaganda, imagem ou em prémios/saídas que servem basicamente para a coesão da clique no poder) no desprezo pela função social primeira das instituições e por aqueles que até mais contribuem para essa função primeira.

A avaliação de desempenho e as progressões nas carreiras são outro aspeto fulcral.  Basicamente muitas das carreiras públicas desmantelaram-se em função de interesses vários. A difícil mobilidade em muitas carreiras torna os profissionais reféns das organizações; as cliques no poder e a autonomia das organizações tornaram as carreiras reféns da fidelidade ao poder organizacional e aos interesses, por vezes até perversos, da clique no poder; a politização da administração pública abriu também várias carreiras a interesses externos, mormente de tipo político, associado a outras redes, evidenciando o nepotismo, o conluio e a corrupção.

A relação entre trabalho e família numa sociedade activa ensanduichada entre o cuidar dos idosos (que querem viver o mais possível até ao fim em autonomia, mas que vão revelando dependências) e os jovens (que querem a sua autonomia, mas que demoram a sair da dependência), torna tudo mais difícil.

Os problemas sentidos pelos cidadãos no seu quotidiano profissional alternam entre a consciência de corrosão das instituições por corrupção, nepotismo e conluio; uma auto-alienação pelo estrito cumprir da sua função de forma instrumental; as ‘side bets’ ou apostas paralelas para manter a sanidade e equilíbrio; a desistência e, em casos mais extremos, mas não menos comuns, a doença clara e diagnosticada. De todas as formas, é o cansaço e a exaustão que é o padrão.

3 Este cansaço e exaustão das pessoas e instituições é resultado de uma entropia das instituições, quer ao nível organizacional, quer na missão específica de cada instituição de base.

A falha sistémica institucional relaciona-se grandemente com os modelos de gestão; o regime jurídico que institui um modelo de gestão grandemente unipessoal, que leva a uma gestão de tipo iliberal e tipicamente czarista em demasiados casos; a manutenção e mesmo reforço da verticalização da gestão em face da fuga de profissionais (os poucos têm de fazer o trabalho de muitos); portanto uma hierarquia mais musculada como resposta à própria exaustão criando mais exaustão; uma falsa avaliação de desempenho premiando fiéis incompetentes mas que ajudam à imagem e às estatísticas e fazem parte da máquina verticalizada que promove a proletarização de quase todos.

Assim, o fim social de cada instituição tornou-se, de facto, anexo de outros fins, que deveriam ser secundários. Agradar à tutela política, a imagem e os resultados estatísticos passaram a ser mais importantes que qualquer função social das instituições. Não é certo que as prisões sirvam à reabilitação e, porventura, nem sequer à manutenção dos presos nas mesmas. Não é certo que as escolas sirvam para educar ou sequer para manter lá os jovens. E não os mantêm, não só por abandono efetivo mas também pelos telemóveis que os colocam em fuga dentro da sala. Não é certo que o serviço nacional de saúde sirva para cuidar dos cidadãos, com uma saúde pública e cuidados primários desprezados. O tratar sempre foi mais importante do que o cuidar, os hospitais mais importantes do que os centros de saúde; as demais especialidades mais importantes que a saúde familiar; os médicos mais do que os enfermeiros e, claro, assistentes sociais, psicólogos e outros. Portanto, o que se esperava no final? Não é certo que a justiça esteja a cumprir a sua missão quando um mero processo de condomínio ou de divórcio pode demorar dois/três anos ou mais! Não é certo que as forças de defesa estejam a cumprir a sua missão pela forma como tratam os voluntários e como estes desejam sair após um contrato. Não é certo que haja uma política de infraestruturas e de habitação que esteja a cumprir a sua função quando centenas de milhares em cada área metropolitana demoram horas a chegar aos seus empregos e a voltar a casa e outras milhares não têm casa de todo ou uma casa decente. Quando pelo menos centenas de jovens universitários estão em condição de ‘pessoa sem abrigo’ (segundo a definição internacional) ao viverem amontoados ou em condições indignas (garagens, corredores, etc.).

4 Os tipping points, o cansaço e absurdos quotidianos resultam, assim, de uma entropia organizacional e institucional, as quais não são senão extensões de más políticas públicas. Desde logo, e acima de tudo, um país que se especializou em exportar cérebros, quadros e mão de obra qualificada e a importar indiferenciados põe em causa a qualidade da democracia, a qualidade das instituições e a qualidade da cidadania. Essa é talvez a política pública mais perniciosa que o nosso país segue.

Por outro lado, cada nova política pública leva, antes de mais, em Portugal à paragem do sistema por seis ou mais meses em função da necessidade de regulamentação, da interiorização da nova política pelos diversos organismos e por todos os disfuncionamentos que uma nova política cria. Assim, cada nova solução num sistema em exaustão, é um conjunto de novos problemas, alguns deles tão difíceis de resolver que implicam sempre uma série de réplicas legislativas. Uma nova política pública é um terramoto. E, ainda por cima, nunca é uma transformação, por vezes nem uma reforma! A palavra ‘simplex’ é, assim, uma espécie de piada não fosse ela trágica! Uma nova política pública revela ainda, quase sempre, uma manutenção da burocracia, porventura deslocando-a de actores e instituições; uma ausência sistemática em escutar os parceiros que deveriam ser parte da solução; a desorientação de muitos actores organizacionais e um instinto de defesa ainda maior para não fazerem asneiras! Ou para não serem apanhados!

5 Quanto ao jogo político perverso que mantém e reproduz todo este sistema em exaustão, é fácil. Os sistemas partidários criaram profissionais especialistas em tomar o poder e manter o poder. Assim, haverá muitas estratégias, mas algumas são claras.

Por um lado, tendo em conta os problemas associados a novas políticas públicas ou reformas que se referiu, um governo dura tanto mais quanto mais tático for e menos alterações de fundo procurar fazer.

Por outro lado, instalam-se nomeados políticos na administração pública não só para gerir a implementação de políticas mas, porventura essencialmente, para que quando o partido perde o poder de direito (eleições) mantenha o poder de facto numa série de instituições da administração pública podendo gerir a maior ou menor dificuldade na implementação de políticas públicas consoante o interesse do jogo político partidário e gerir mesmo a altura de voltar ao poder.

O paradoxo da mudança implica, assim, que as grandes transformações têm de ser feitas no início do mandato de um governo, mas tal não é possível pois os responsáveis pela mudança institucional na Administração foram colocados pelo anterior executivo.

E quando um partido está prestes a sair do poder executivo, há consultores políticos capazes de produzir ‘armadilhas’ que tornarão pelo menos os primeiros meses de qualquer outro governo uma grande dificuldade. Desde logo, caso tenha havido promessas de reformas, legisla-se mas deixa-se a implementação para o seguinte. E depois há muitas outras armadilhas, dependendo da inovação do momento: criar perversidades nas carreiras; desigualdades entre carreiras similares; deixar promessas por cumprir; ativar mesmo a contestação social, etc.

Numa sociedade mais reflexiva tudo isto seria discutido, analisado ao pormenor e desmontado. Numa sociedade sem tempo para a reflexão, com salários diminutos e com dificuldades quotidianas várias, cria-se um cansaço estrutural e é essa realidade simplesmente cansada e exausta em que vivemos.