Interesse nacional e suspensão da lei: esta combinação de palavras não deveria accionar automaticamente um alarme no nosso sistema institucional de escrutínio democrático? Pois parece que não acionou! Refiro aqui os PIN – Projectos de Potencial Interesse Nacional. São esses projetos que articulam habilmente o interesse nacional e a suspensão da lei. Nascidos de um Conselho de Ministros em 2005, têm quase 20 anos e um universo de 292 projectos, sendo o Data Center de Sines o número 259. E, no entanto, cientificamente, contam-se apenas duas dissertações de mestrado no RCAAP sobre tal objeto. Isto, por um lado, evidencia a (falta de) relação entre Universidade e Políticas Públicas, mas, por outro, não admira, pois não há transparência e, portanto, não há informação! Resultado: não há análise política e de políticas públicas por muito comentário político (ou politiqueiro) que haja. Neste pequeno texto faço a análise possível dos projetos PIN, defendo uma tese e apresento alguns argumentos para a sua demonstração. No entanto, o que é necessário é uma ‘auditoria cidadã’ sistemática aos projetos PIN e PIN+dos últimos 20 anos!

O Estado de Excepção

Várias democracias ocidentais actuais normalizaram o ‘Estado de Excepção’, segundo Giorgio Agamben, considerado como um governo que agrega em si a função legislativa e a executiva: a governação por decreto, tornando o parlamento uma espécie de cenário ou pior – um coro grego que enfatiza tal acção. Esse ‘Estado de Excepção’ atinge um nível mais aprofundado quando se dá uma legal suspensão da lei e se cria uma ‘zona de anomia’ (um espaço liminar ou de indiferença) em que à lei se substitui a decisão com força de lei (da lei que suspendeu a lei, entenda-se). Portanto, é tudo legal. Mas, efetivamente, o resultado é a liberdade discricionária da acção política. Ou seja, estamos dentro e fora da lei. O ‘Estado de Excepção’ fica assim confirmado como uma habilidade governativa de transcender a regra da lei em nome do interesse nacional, actuando casuisticamente. Em última análise, na demonstração de tal habilidade, estamos perante uma ‘ditadura do executivo’. Se entre as duas Grandes Guerras, no século XX, o Estado de Excepção na Europa foi função da emergência militar, na actualidade ele é mormente função de uma emergência económica cuja lógica é, aliás, similar. O que é certo é que, quer o móbil seja militar, económico ou outro, a instituição regular e sistemática da excepção e, portanto, da total discricionariedade política, leva à liquidação da democracia.

A receita é simples: constrói-se um castelo legislativo inexpugnável de condicionantes e, depois, colocam-se estrategicamente portas e senhas (checkpoints/gatekeepers) para que entre apenas quem se quer que entre. Sempre de forma legal. Segue-se a criação dos critérios de excepção, processos de ligações diretas, comissões e, finalmente, a suspensão da lei, substituindo-a pela decisão: todos estes passos têm como corolário a governação política sem escrutino e, portanto, discricionária. Dito ainda de outra forma: depois de criar um ‘Portugal impossível’ para os Zecas (os zés ninguém, condenados uma vida sem valor: ‘vida nua’), estabelecem-se as ‘artes do fazer’ do processo de privilégio para os Pins (os escolhidos, com direito a uma ‘vida boa’). E até é possível, nos preâmbulos da legislação das ‘portas’, ler críticas ao ‘castelo’ que os mesmos ajudaram a criar. Melhor é impossível!

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E como foi que chegámos aqui? E que papel teve a Assembleia da República enquanto representação dos cidadãos e, portanto, do tal Interesse Nacional?

Os Projectos PIN e PIN+

A Resolução do Conselho de Ministros nº 95/2005, de 24 de Maio estabelece que o ‘Interesse nacional’ dos projetos é definido por uma ‘Comissão’ (os gatekeepers) de dirigentes da Administração Pública – subalternos ao governo. O Decreto-Regulamentar nº 8/2005, de 17 de Agosto estabelece a ligação direta entre o Governo (por intermédio da ‘Comissão’) e os negócios e identifica, ainda, os critérios de excepção. O Despacho conjunto 606/2005, de 22 de Agosto estabelece a forma ‘requerimento’ para aceder aos privilégios. Portanto, a classificação de um projecto como PIN não está sujeita nem a uma aberta consulta pública nem sequer à análise dos nossos representantes diretos: os deputados. Qual a legitimidade de uma Comissão de não eleitos para definir um projecto como sendo de Interesse Nacional? É só, aparentemente, no decreto-lei 285/2007, de 17 de Agosto que se dá o mecanismo de fechamento que estabelece uma relação direta entre Interesse Nacional e suspensão da lei, sendo em Despacho conjunto de ministros indicada a ‘identificação dos instrumentos de gestão territorial cuja elaboração, alteração ou, eventualmente, suspensão seja necessária’.

Posteriormente estes diplomas são revogados, dando lugar ao Decreto-Lei nº 174/2008 que, no fundo, o que fez foi concentrar a disciplina vertida nos anteriores diplomas. Finalmente, o Decreto-Lei 154/2013 pretendia torná-lo ‘mais transparente e abrangente’ como se afirma em preâmbulo. No entanto, o que este diploma torna claro (cf. Artº 2º) é que é o governo, e apenas o governo, que legisla, executa/manda executar, fiscaliza, suspende legislação e altera num círculo contínuo e fechado (desdobrando-se em ‘Estrutura Interministerial’; ‘Conselho de Ministros’; ‘Comissão de Acompanhamento’) e sem qualquer escrutínio exterior. A suspensão da lei é aqui muito clara na alínea ‘e’ do artº 2º: “e) Propor ao Conselho de Ministros a aprovação, alteração, suspensão ou ratificação dos instrumentos de gestão territorial necessárias à implementação de projetos PIN.”

O que é evidente nesta demonstração, sobre os PIN e os PIN+, é, repito, que o governo legisla, executa e fiscaliza sem qualquer outra entidade que funcione como escrutinadora. À Assembleia da República cabem apenas iniciativas de Apreciação dos Decretos-Lei (redundando em meras críticas) ou iniciativas de Resolução (propondo a cessação da vigência de um decreto-lei) ou ainda Projectos-Lei que, ao serem rejeitados, perdem qualquer eficácia. Fica, assim, o governo livre para toda a acção política, restando apenas à sociedade civil organizada (inclusive os media) e, porventura, ao Ministério Público (em situação grave) o escrutínio externo. Em toda esta história de quase 20 anos, o PCP teve uma Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei 285/2007 a 13 de Outubro 2007 e houve 5 Projectos-Lei, três do PEV (nº 861/X de 8 de julho de 2009; o nº 360/XI de 29 de junho de 2010; nº 232/XII de 16 de maio de 2012) e dois do PCP (n.º 223/XIII de 17 de Maio de 2016 e nº 229/XIII de 6 de maio de 2016). Todos rejeitados.

A democracia de enclave

Não há consulta pública da escolha de projetos PIN, não há relatórios acessíveis sobre os PIN que nos informem da sua execução (sabemos apenas que o acompanhamento terminou para 72 projetos), não se conhece o financiamento nem o cumprimento (ou não) dos requisitos que os favoreceram e não há também qualquer forma de sanções para os PIN que não tenham cumprido com os requisitos.

Este regime jurídico dos PIN e PIN+ não consubstancia nem uma economia de mercado saudável, ainda que regulada pelo Estado, nem um sistema de investimentos estatais. Antes um sistema de favorecimento e de ligação direta entre governos e negócios com escolha discricionária em que a suspensão dos Instrumentos de Gestão Territorial e a ausência de escrutínio (ressalvando os que foram impedidos por consulta pública) levou já a falhas graves na concorrência, favorecimento no acesso a recursos financeiros (quer da banca, quer europeus), confusão entre projectos turísticos e imobiliários, apropriação indevida e com grandes mais-valias de zonas de proteção ambiental e agrícola, entre outras muitas disfuncionalidades. Tal impossibilitou a criação de uma classe média empreendedora e forte, mantendo o país na pobreza. E, para além disso, reproduz um sistema político dominado pelo modelo patriarcal-tutelar sobre os cidadãos, num quadro típico de patrocinato-clientelismo e gerindo-se em função de um modelo de enclave. A democracia de enclave evidencia um executivo que, ao governar em bolha, mantém o resto das instituições democráticas grandemente como folclóricas. Este modelo de democracia de enclave tende a reproduzir-se noutras instituições nacionais levando ao esvaziamento do poder dos órgãos colectivos (‘conselhos’/ ‘assembleias’) em função de uma hipertrofia executiva e do poder da decisão avulsa com força de lei.