No meio das notícias deste início de verão, apareceram, fugazmente, imagens de astronautas dentro de uma cápsula espacial, e também do lançamento de um estranho e gigantesco foguetão. À primeira vista é estranho ver notícias com cápsulas espaciais porque já estamos habituados a vê-las desde Gagarin, o primeiro humano a ir ao espaço. O gigantesco foguetão é mesmo estranho, e mais parecido com uma gigantesca baleia do que com os longilíneos e brancos foguetões que estamos habituados a ver.

Essas imagens não são ficção. São verdadeiras, atuais e de facto merecem ser notícia.

Comecemos por recapitular aquilo que foi noticiado. No dia 5 de junho foi finalmente lançado com sucesso, à 3.ª tentativa, o foguete Atlas 5 com uma cápsula Boeing Starliner destinada à Estação Espacial Internacional (EEI), que orbita o nosso planeta há cerca de 25 anos. Um dia depois, vimos as imagens de um voo experimental do foguetão Starship, da SpaceX, o tal foguetão estranho, que um dia irá transportar dezenas de pessoas até Marte. Mais recentemente, foi noticiado que a Agência Europeia Eumetsat decidiu retirar um satélite previsto para ser transportado no voo inaugural do foguetão europeu Ariane 6 e colocá-lo num voo de um foguetão da norte-americana SpaceX. De facto, a estreia do europeu Ariane 6 está prevista para o início de julho, substituindo, finalmente, o venerável Ariane 5, que se reformou em 2023 e que foi o principal foguetão da Europa durante 25 anos, e do qual foram produzidas e lançadas 117 unidades.

Mas porque é que estes acontecimentos são notícia? É preciso contextualizar para o perceber. Para isso, recuemos 10 anos. Em 2014 foram feitos, no mundo inteiro, 92 lançamentos orbitais. Desses, 12% saíram de território europeu, 25% dos EUA e os restantes de outros países. Dos 11 lançamentos europeus, 4 foram de foguetões Soyuz (russos) lançados da França. Bem, não exatamente da França a que estamos habituados, mas sim de uma província ultramarina que fica no continente sul americano a norte do Brasil. Essa província chama-se Guiana Francesa e no passado era conhecida pela enorme colónia penal francesa que albergou “hóspedes” notórios como, por exemplo, Papillon. Esses tempos já passaram há muito, e hoje esta província francesa destaca-se por albergar a maior infraestrutura espacial da Europa, numa pequena cidade chamada Kourou. Esta cidade fica mesmo em frente às “Ilhas da Salvação” que apesar do nome, eram o destino, nos tempos da colónia penal, dos prisioneiros mais perigosos e violentos. Mas voltando ao nosso tema, neste Centro Espacial, em 2014, estavam operacionais três sistemas de lançamento, um por tipo de foguetão: o Ariane 5, o Vega e o Soyuz. Os dois primeiros europeus e o último russo.

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Nesse ano a SpaceX e a Ariane lançaram exatamente o mesmo número de foguetões. A indústria aeroespacial já estava em profunda transformação, imposta pela necessidade dos EUA em abastecer regularmente a Estação Espacial Internacional (EEI).

Apesar de todos os foguetões serem “descartáveis”, ou seja, só servirem para um único lançamento, já vinha a caminho uma revolução porque a SpaceX já estava a testar a possibilidade de reutilizar foguetões desde 2012. A diferença é muito substancial. Fazendo um paralelo grosseiro com a aviação, é como se num dos casos um avião ficasse inutilizado ao fazer uma única viagem, e no outro caso um avião ser capaz de fazer várias viagens.

O acesso dos americanos à EEI foi-se complicando à medida que os problemas técnicos e custos de utilização do Space Shuttle, ou em bom português do Vaivém Espacial, eram cada vez mais incomportáveis. Apesar da catástrofe com a Columbia em 2003, estas naves, perigosas e com custos de exploração altíssimos, voaram até 2011. Entretanto, a NASA já tinha iniciado o trabalho de projeto e construção do sistema de foguetões que iriam substituir a frota de Vaivéns Espaciais, o Constellation. Mas apesar de terem sido investidos muitos bilhões no desenvolvimento deste foguetão, este Programa acabou por ser cancelado. Seguia os mesmos moldes do Programa Apollo, aquele que desenvolveu o foguetão Saturno V para colocar astronautas na Lua. Nos dois casos o foguetão era desenvolvido pela NASA, que por sua vez delegava a construção do veículo a uma cadeia industrial que era liderada por duas empresas de grande porte que também vinham do Programa Apollo. Quando os orçamentos federais já não eram suficientes para alimentar as 2 empresas estas fundiram-se numa única entidade. O cancelamento do Programa Constellation foi parcial, tendo alguns dos seus componentes sido aproveitados para um novo foguetão pesado chamado Space Launch System e a respetiva cápsula Orion como elementos principais do Programa Artemis, que um dia voltará a levar astronautas à Lua. E seguindo a mesma tradição do Constellation, o Artemis também tem um longo historial de falhar prazos e orçamentos.

Na NASA havia muita resistência em mudar a forma como sempre tinham trabalhado desde o Programa Apollo. Como escreveu Lori Garver no livro Escaping Gravity, a NASA e indústria envolvente utilizaram os sucessos do passado (sobretudo ter conseguido colocar astronautas na Lua), como justificação para manter o modus operandi de sempre e ao fazê-lo limitar gravemente o seu próprio futuro. Era preciso manter o status quo.

A NASA chamava a si as decisões estratégicas, na perspetiva de manter a estrutura industrial, com o apoio político crucial dos senadores dos estados onde existiam as infraestruturas e os empregos NASA. Os veículos eram desenhados pela NASA e construídos pelas empresas do costume.

Para as empresas dessa cadeia industrial era muito mais lucrativo estarem totalmente dedicadas a este mercado do que desenvolverem um mercado comercial competitivo, com veículos mais inovadores e eficientes. Qual a necessidade de arriscar em inovação se não havia concorrência e os preços que praticavam eram fantásticos? Foi este círculo vicioso que abriu a porta para a supremacia de mercado do Ariane 5 europeu.

Citando de novo Lori Garver, dos 12 programas de Voo Espacial propostos pela NASA a seguir ao programa Apollo, e que seguiam esta abordagem, apenas 2 se concretizaram, o Vaivém Espacial e a Estação Espacial Internacional, ambos com enormes atrasos e sobrecustos gigantescos, e no caso do Vaivém com dois acidentes catastróficos. Estes 2 programas eram tão caros que consumiam praticamente todos os recursos financeiros de que a NASA disponha.

O voo dos Vaivéns foi prolongado o mais possível, mas quando estes foram retirados os americanos acabaram num beco sem saída. Deixaram de ter a capacidade própria de transportar carga e passageiros de e para a EEI.

Ultrapassaram esta situação inspirando-se numa lei com 100 anos, o Kelly Air Mail Act de 1925. Esta Lei teve como objetivo separar o transporte do correio aéreo da entidade responsável pela entrega desse correio, o US Post Office. Esta entidade estatal estabeleceu contratos duradouros com as nascentes companhias aéreas privadas que assim passaram a ter uma fonte de proveitos estável sobre a qual começaram à procura de novas oportunidades de negócio, nomeadamente transportar passageiros da cidade A para a cidade B. Assim se construiu a indústria do transporte aéreo

Voltando ao transporte de tripulações e carga para a EEI, só em 2014, 3 anos depois do fim dos vaivéns, é que a NASA tomou a decisão de escolher duas empresas para desenvolver e construir os novos sistemas para transportar tripulação e carga para a EEI. Foram escolhidas a Boeing e a recém-chegada SpaceX, tendo a primeira um contrato substancialmente mais chorudo que a segunda. A escolha da SpaceX foi completamente fora de pé relativamente à tradição. Mas foi assim que se conseguiu quebrar a lógica da verticalização, que vinha desde os tempos do Apollo. A NASA externalizou os serviços de transporte de tripulações e abastecimento da EEI.

O paradigma mudou completamente, o cliente NASA focou-se nos requisitos a cumprir pelos seus fornecedores. Estes focaram-se em responder a esses requisitos da forma mais eficaz e eficiente possível. Foi aberta a porta para a inovação e eficiência. E foi também o ponto de partida para libertar recursos que permitiram à NASA focar-se no que faz melhor, isto é abrir novos horizontes, sendo o caso mais emblemático o telescópio espacial James Webb.

O beco sem saída americano conduziu à suprema humilhação da NASA que, após o fim da operação dos vaivéns, se viu, durante 9 anos, obrigada a depender dos russos para transportar carga e tripulações para a Estação Espacial Internacional. Entretanto as duas empresas escolhidas para desenvolver os sistemas de lançamento e as cápsulas de transporte procuravam mostrar serviço. Cinco anos depois de ter sido selecionada, a Boeing falhou a atracagem da sua cápsula Starliner à EEI. Em junho de 2024, com sete anos de atraso, finalmente conseguiram atracar com sucesso na EEI, embora com problemas técnicos que têm provocado adiamentos sucessivos do regresso da cápsula e respetivos passageiros à Terra. Estes problemas adensam cada vez mais as dúvidas sobre qual a utilidade desta cápsula quando a EEI for descontinuada, o que deverá acontecer daqui a 5 ou 6 anos. Enquanto isso, a SpaceX, que – relembro – tinha um contrato com a NASA de montante substancialmente inferior ao do seu concorrente, tem a sua cápsula Dragon a transportar tripulações e carga desde 2020. Até agora já transportaram cerca de 50 pessoas.

Na Europa, em 2014 o esforço de desenvolver e construir tecnologia espacial era coletivo sob a batuta da Agência Espacial Europeia (ESA), com a participação de muitos países, incluindo Portugal, mas as 3 grandes potências eram a França, Itália e Alemanha.

A maior parte dos lançamentos feitos nesse ano eram institucionais, ou seja, eram financiados por Estados, e os seus clientes eram entidades estatais de cariz científico ou militar. Apesar da Europa representar cerca de 12% dos lançamentos feitos em 2014, o seu peso no mercado aberto de satélites privados era bastante grande, aliás, era o maior de todos a nível global. O Ariane 5 tinha a melhor relação fiabilidade/preço, e por isso era o mais competitivo e tinha as maiores listas de espera com clientes do mundo inteiro.

Apesar de muitos dos clientes serem privados, o negócio dos lançadores na Europa era muito institucional e liderado por empresas de grande dimensão, verdadeiros “campeões nacionais” intimamente ligados com os seus países de origem no domínio aeroespacial e da defesa. O foguetão Ariane 5 era essencialmente de origem francesa e alemã, enquanto o VEGA é italiano.

O orçamento da ESA tem uma componente acessível a todos os países membros, e uma componente opcional em que cada país membro decide se adere. O princípio é parecido com o modelo da televisão por cabo: uma componente com um custo fixo que dá acesso a um conjunto de canais, mas depois existem outros que para serem acedidos carecem de um pagamento à parte.

O Ariane 5 fazia parte dos programas opcionais e como tal só alguns países faziam parte desse Programa. Cada um dos países colocava um determinado montante até o somatório de todos os países corresponder ao orçamento de desenvolvimento, construção e operação do Ariane 5. Logicamente, quando o país A coloca neste Programa o montante de 100, para desenvolver um determinado tipo de atividade, naturalmente espera que seja a sua base industrial nacional, que normalmente inclui os seus campeões nacionais, a receber trabalho no montante igual ou superior aos 100 investidos. Só que a empresa do país A pode estar a executar essa atividade a um preço muito mais alto do que o poderia fazer uma empresa do país B ou C, e desta forma está a introduzir sobrecustos no Programa e a torná-lo menos competitivo.

A situação na Europa não era exatamente igual à dos EUA, mas tinha grandes semelhanças. E em 2014 estava ao rubro a discussão da sucessão do Ariane 5, pelo Ariane 6.  Como já foi referido, o Ariane 5, era um veículo muitíssimo fiável, mas também caro. Havia também um receio legítimo de, no dia em que a concorrência internacional tivesse foguetões mais baratos e fiáveis, este se tornasse pouco competitivo, e assim a Europa perdesse o lucrativo negócio dos satélites privados. Por isso, para o Ariane 6, procurou-se manter os níveis de fiabilidade do seu antecessor, ao mais baixo custo possível. Na altura a possibilidade de reutilizar parte dos foguetões era desdenhada pelos europeus apesar de, como referi antes, a SpaceX já estar a trabalhar na reutilização de foguetões desde 2012, com resultados muito encorajadores. A escolha das tecnologias a utilizar no novo veículo tinha implicações significativas na cadeia de fornecimento, colocando em causa muitos postos de trabalho e infraestruturas dedicadas já existentes. Por isso, após meses e meses de discussão preferiu-se seguir em frente com uma tecnologia menos impactante do ponto de vista dos custos sociais, mas mais cara e logo menos competitiva.

Dentro de alguns dias teremos o voo inaugural do Ariane 6. Este foguetão irá permitir à Europa dispensar a utilização dos foguetões não europeus e retomar o acesso direto ao Espaço, sem ter de estar dependente de países terceiros, o que tem sido maioritariamente o caso desde que o Ariane 5 se reformou. Mas o conservadorismo e arrogância dos europeus, que desprezaram a possibilidade de reutilizar o primeiro andar dos lançadores, colocou-os também num beco sem saída. Um veículo descartável, que só é utilizado uma vez, será sempre mais caro do que um veículo que pode ser reutilizado múltiplas vezes. Isto quer dizer que o Ariane 6 nunca conseguirá competir em preços com o Falcon 9 da SpaceX. Esta situação ainda se vai agravar mais com a entrada em serviço do gigante Starship, também reutilizável, e que terá preços de acesso ao espaço ainda mais baixos. Isto quer dizer que o Ariane 6 será sobretudo utilizado para missões institucionais, relacionados com a soberania europeia, e para as quais o preço de lançamento não é o critério mais relevante. É inegável que os europeus devem dispor de autonomia no acesso ao espaço, mas este é um resultado «poucochinho» e que vai ficar muito caro aos contribuintes europeus.

Os seguintes números mostram a magnitude da questão: em 2023 a SpaceX lançou 96 vezes dos quais 91 com o Falcon 9. Em 2024, até ao final de maio, já lançou 60 vezes e prevê chegar aos 144 lançamentos até ao final do ano, para além de manter a cadência de voos de ensaios do Starship.

A Europa está presa num dilema. O investimento no setor aeroespacial europeu é sobretudo institucional. Cada país investidor exige que uma parte significativa desse investimento seja aplicado no seu próprio país. Para isso são atribuídos pacotes de trabalho às suas empresas, tendo em conta sobretudo a capacidade técnica. Só que, como ao nível nacional acaba por haver poucas entidades com as competências e capacidades necessárias, de facto há pouca concorrência. E não havendo concorrência os preços praticados são altos. Multiplicando esta lógica à escala europeia não é nada fácil desenhar e construir, em tempo útil, novos veículos espaciais competitivos, fiáveis e ajustados às necessidades do mercado de satélites privados, que está a crescer muito mais rapidamente que o mercado institucional.

Os americanos demoraram uma década para conseguir sair do beco em que se encontravam. Os europeus ainda nem sabem como o vão fazer. A indústria aeroespacial europeia continua a funcionar numa lógica pouco competitiva e focada nos interesses dos respetivos campeões nacionais, tradicionalmente empresas de grande dimensão que também têm poucos incentivos para arriscar, inovar e produzirem veículos mais eficientes e competitivos. Por isso desprezaram a possibilidade de estudar as tecnologias de reutilização dos lançadores. Muito provavelmente a Europa vai acabar por se especializar em nichos uma vez que perdeu a batalha da inovação no mercado dos grandes lançadores. Mas se a Europa continuar a insistir nesta abordagem voltará a perder a batalha da inovação e tenderá cada vez mais para a irrelevância no panorama global.