A ciência é o artefacto sistematizado da curiosidade humana. Como tal, está em permanente dialéctica com a ignorância, alimentando-se da dúvida, da incerteza, do risco, e, sobretudo, da liberdade de pensamento. Conceitos como consenso, autoridade e verdade, são-lhe estranhos. O conhecimento científico, «qual pluma al vento», é volúvel e entre as suas funções não se encontra a formulação de juízos metafísicos.

Contudo, nunca, como na actualidade, se falou tanto de consenso e jamais a autoridade dos peritos foi tão reverenciada – principalmente quando está em sintonia com a agenda de governantes oportunistas. Com efeito, a especialização sôfrega e o elogio da autoridade definem, ao dia de hoje, a imagem da ciência e do cientista. Junte-se, a este equívoco, políticas de investigação centralizadas e administradas por burocratas e temos o esboço de um declínio há muito anunciado. A ciência moderna, numa fase contranatural do seu ciclo vital, enfrenta o mais duro teste desde que Descartes e Bacon lançaram a suas fundações.

Averiguar as causas do desvio das boas práticas científicas não é uma tarefa trivial, até porque a própria natureza da ciência pode estar na origem do problema. Passo a explicar. Se é certo que uma leitura de John Milton beneficia de um convívio com Homero, Vergílio e Ariosto, uma abordagem a Paraíso Perdido que se assuma menos conhecedora (ou reconhecedora) das suas influências e modelos não está condenada à irrelevância: não é preciso discernir afinidades entre a lança de Satã e o escudo de Aquiles para apreciar a (sempre difícil) épica miltoniana. Compreender os resultados de Einstein sem um conhecimento consistente de mecânica clássica é mais complicado. Por outras palavras, há uma propriedade cumulativa na ciência que não podemos descartar no apuramento de responsabilidades pela deriva da multidisciplinaridade e triunfo da especialização.

Na verdade, para a degradação do edifício científico concorrem um conjunto de factores, um dos quais, nada despiciendo, é o acesso de outra instituição aos corredores da ciência: o Estado. Nem sempre foi assim. Ao longo de quase três séculos, os cientistas gozaram de uma relativa independência do poder político. É um facto que, no decurso desse período, houve apoios mecenáticos à investigação e às grandes empresas de exploração geográfica, mas, salvo algumas excepções, foram patrocínios desinteressados, propostos por sócios silenciosos em busca de prestígio social e que não interferiam nas linhas de investigação dos cientistas. A situação mudou em meados do século passado. Desde então, a ciência franqueou as portas da sua casa ao poder, ficando sujeita à depredação de uma entidade voraz. A perda de liberdade e autonomia foi a consequência irreparável desse descuido.

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A incompatibilidade entre ciência e Estado é estrutural. A ciência progride através de tentativas e erros; o Estado, na sua concretização contemporânea e socializante, é intransigente com o erro e a incerteza. Na investigação científica, há caminhos infecundos e sinuosos, mas não há caminhos inúteis; os governos, autodesignados guardiões da esfera pública e da esfera privada (cuja fronteira gostariam de abolir), rejeitam o direito individual a fazer más escolhas. A ciência é um processo de descoberta colectivo, apoiado na liberdade individual, e, por esse motivo, dá-se muito mal com o colectivismo. O Estado é o pior inimigo da ciência.

Antes de prosseguir, impõe-se aqui uma advertência: temos uma maior sensibilidade para a época em que vivemos e não é de excluir a hipótese de que este juízo sobre a actual conjuntura científica esteja comprometido por um viés de observador. Não obstante, há sinais inequívocos do declínio da ciência. A fraude tem crescido significativamente e a quantidade de artigos retirados ou retractados nas revistas de maior prestígio alcançou, na década passada, uma dimensão alarmante. A investigação básica, pouca mediática e afastada das prioridades do poder, definha. Os cientistas, pressionados pela necessidade de financiamento – e de gestão desse mesmo financiamento –, são desviados com cada vez mais frequência para tarefas de administração. A relação próxima entre mestre e aluno e entre colegas foi substituída pelo contacto à distância e por colaborações fictícias que visam, principalmente, a obtenção de fundos e o milagre da multiplicação das aptidões curriculares. Em suma, o mau comportamento científico prospera sob a vigilância atenta a anuente do Estado.

O sistema de financiamento por projecto, que concentra os fundos públicos em meia dúzia de áreas definidas pelos governos, é uma das principais causas do problema. Margaret Thatcher constatou que «os grandes avanços científicos não surgiram de planos práticos, mas sim de mentes criativas científicas.» Thatcher tinha treino científico (licenciatura em química por Oxford), era inteligente e conhecia os perigos da sovietização da ciência. Já os governantes contemporâneos, julgando-se competentes para definir áreas prioritárias, subvertem os fundamentos da investigação e inibem as qualidades fundamentais dos seus agentes: curiosidade, criatividade e liberdade. A ciência não se controla por decreto.

Em nome do rigor, há que dizer que o declínio não é exclusivo das ciências naturais e é até mais evidente nas ciências sociais e nas humanidades, onde a liberdade de expressão e o debate de ideias foram pulverizados por um novo ideal censório: os clássicos são reprovados e afastados dos programas académicos se ofendem os dogmas do feminismo e de outras doutrinas totalitárias; a dissidência é perseguida e tratada como um delito de opinião; a linguagem é vigiada e a gramática modificada de acordo com os padrões das ideologias dominantes; o património histórico e artístico, com a aprovação tácita das elites bem-pensantes, é alvo da fúria popular. A sensação de crepúsculo civilizacional é categórica. Neste contexto social e histórico, a apoteose do consenso e da verdade e a chamada dos «especialistas» ao palco seria um espectáculo hilariante, se não fosse trágico.

A propósito da especialização e do conflito entre burocracia e liberdade científica, mencionarei agora um episódio da história da ciência e da técnica que ilustra bem a importância do conhecimento horizontal, da liberdade de consciência e da insubmissão à autoridade. Como muitos se devem recordar, no dia 28 de Janeiro de 1986 o vaivém espacial Challenger desintegrou-se sobre o oceano Atlântico. Depois de um inquérito interno inconclusivo, a presidência norte-americana decidiu recorrer a uma comissão independente para investigar as causas do acidente. Para o efeito, convocou um grupo variado: alguns, engenheiros aeronáuticos com ligações à NASA, poder-se-iam considerar especialistas; outros, que constituíam uma parte significativa da equipa, eram formados nas mais diversas áreas. Um desses «não especialistas» era Richard Feynman, físico teórico e prémio Nobel – e a quem tomei de empréstimo o título deste artigo.

Foi Feynman quem identificou a falha técnica que, com elevada probabilidade, causou o acidente do Challenger. Foi também ele quem se apercebeu de que a hierarquia da NASA silenciou avaliações de risco menos favoráveis ao lançamento do vaivém naquela data. Durante as averiguações, Feynman notou ainda que alguns elementos da comissão, mais comprometidos com a instituição, se sentiam pouco à vontade para fazer as perguntas contundentes e assinalar, publicamente, as fragilidades da missão. A autoridade é incompatível com o apuramento dos factos científicos.

A história do Challenger demonstra ainda que qualquer cientista bem treinado pode oferecer soluções para problemas que, em aparência, se encontram fora da sua área de eleição. Desqualificar um cientista ou um engenheiro por não ser, de acordo com os estritos critérios contemporâneos, um especialista, não é ciência: é censura. Além do mais, um especialista não é um deus nem um oráculo. Pode até ser uma criatura intelectualmente limitada, mesmo que bem preparada numa área reduzida do conhecimento científico. E em ocasiões, nem isso é. Ao dia de hoje, passam por especialistas toda a espécie de aficionados e farsantes: milionários com uma estranha obsessão por vacinas, candidatos presidenciais frustrados com mensagens apocalípticas, adolescentes absentistas com transtornos neurobiológicos, jornalistas com pouca vocação para o jornalismo mas muito talento para o drama, matemáticos que se aventuram na epidemiologia antes de estudarem as barreiras de imunidade. Dá para tudo – até para políticos semianalfabetos reinventarem o espectro de acção dos antibióticos.

A comunicação social, que devia vigiar estes simulacros de informação e os ataques ao edifício da ciência, não só se demite das suas funções, como ainda faz o papel de mestre-de-cerimónias de um circo de aberrações, promovendo o medo, o obscurantismo e toda a classe de charlatões – quem ainda se lembra do «especialista» Artur Baptista da Silva?

Esta não é, decididamente, uma época científica. Numa época científica, os mensageiros do pânico não teriam tanto tempo de antena e o cepticismo informado não seria apodado de negacionismo. Numa época científica, não se desinfectariam escolas fechadas durante meses, nem se despejaria lixívia sobre praias e respectivas comunidades bióticas. Numa época científica, não se sujeitaria um cidadão saudável a tapar a cara com um pano a pretexto de uma doença respiratória. Numa época científica, a condução solitária com máscara cirúrgica seria uma cena invulgar e burlesca. Numa época científica, considerar-se-ia inadmissível que o Estado fizesse com a morte aquilo que faz com os recursos dos contribuintes: transferi-la, com critérios arbitrários, de um domínio para o outro – a fazer lembrar as inquietantes palavras de Edgar Morin: «A morte é o campo de batalha, o palco eterno, cuja posse dá o poder sobre as almas. Quem possui a morte possui o poder!» Numa época científica, a razão não seria vencida pelo medo.

Concluindo, a ciência foi infectada pelo vírus do Estado, está ligada ao ventilador e, mesmo que recupere, as sequelas podem ser permanentes. E quando a ciência, a razão e o conhecimento se ausentam, o obscurantismo e o poder discricionário sentir-se-ão tentados a ocupar o lugar vago. Sem os freios, institucionais e informais, de uma sociedade aberta, sem a vigilância de uma imprensa livre e o controlo do poder judicial, os governos transformar-se-ão então em bandos de funcionários prepotentes, chefiados por sociopatas (ou simples imbecis) convencidos da supremacia natural sobre uma população assustada e submetida voluntariamente a todos os abusos. Nessas circunstâncias, os únicos recursos de um cidadão livre são a desobediência e a resistência: intelectual ou física, passiva ou violenta.