Por razões profissionais, tenho passado uma boa parte do meu tempo, nas últimas semanas, a ler alguma da vasta literatura contemporânea sobre a filosofia da música. Mais precisamente, a parte dessa literatura que lida com a relação entre a música e as paixões, ou, como se diz a partir do século XIX, as emoções. Há, neste domínio, duas questões fundamentais. A primeira é: como reagimos nós emocionalmente à música? E a segunda: haverá algo na própria música que contenha em si alguma coisa de correspondente às nossas emoções e que legitime, por exemplo, a afirmação segundo a qual uma determinada peça musical exibe, ou exprime, tristeza? As duas questões, embora distintas, tendem por vezes a confundir-se, e nesses casos é difícil tratar delas em absoluta independência uma da outra.
Não há certamente ninguém que tenha ouvido música com alguma atenção que não se tenha colocado, quase sem querer, estas duas questões. Elas são, por assim dizer, naturais, não relevam de especulações idiossincráticas. E, é claro, para ganharem todo o seu sentido é preciso pensar na chamada música pura ou absoluta, isto é, daquela que não vem, como a ópera ou o lied, acompanhada de palavras. Porque, neste último caso, a identificação das emoções, e a nossa reacção a elas, encontra-se, à partida, se não assegurada, pelo menos muito facilitada. Na música pura não.
O que é que dizem os filósofos sobre a natureza da nossa reacção emocional à música? As doutrinas à disposição do freguês são várias. Escolho quatro. A primeira diz-nos que a música nos desperta emoções em razão de um processo de associação, remetendo-nos para tempos, lugares e pessoas com os quais a identificamos. Não é particularmente convincente, até porque o papel da música se limita aí ao de auxiliar da memória. Uma outra teoria, a que prefiro entre todas, diz-nos que a atribuição de emoções à música é, como entendida habitualmente, injustificada. A nossa reacção, no que diz respeito ao medo, à alegria, etc., seria, no fundo, injustificada. A música não conteria em si essas emoções. Em contrapartida, poder-se-ia efectivamente dizer que é possível reagir à música identificando o que nela nos provoca prazer ou desprazer, e que, a partir dessa identificação, algumas emoções podem ser derivadas. Em terceiro lugar, há quem defenda que a própria estrutura da música, sobretudo como concebida na chamada “forma-sonata” (de Haydn a Schubert, sensivelmente, passando por Mozart e Beethoven), suscita em nós uma série de emoções: surpresa, satisfação, espanto, alívio, etc. A coisa também me convence. A quarta hipótese, não. Haveria uma afinidade natural entre certas sonoridades musicais e certas sonoridades “naturais” que usualmente imaginamos acompanhadas de emoções determinadas: medo, e por aí adiante.
E no que respeita às propriedades expressivas da própria música? Será que a música, por si própria, pode exprimir emoções? Uma hipótese que me convence muito é que a forma musical transporta consigo personagens que a nossa imaginação pode capturar. Em cada peça musical há uma persona que fala. E essa persona faz-nos descobrir emoções que antes não tínhamos tido, ou das quais não nos tínhamos nunca apercebido. Num sentido forte, a música cria emoções. Depois, há teorias que postulam, de formas diversas, uma semelhança de base entre a própria música e as nossas emoções. Ou uma semelhança de superfície (um pouco como a expressão dos cães são-bernardo exibe aparente tristeza, a música exibiria a aparência de tristeza) ou uma semelhança mais profunda. A música conteria em si mesma elementos emocionais que, de uma maneira ou de outra, seriam semelhantes às nossas próprias emoções.
Confesso que estas teorias da semelhança não me convencem, até porque nos faltam critérios para estabelecer a validade das semelhanças. O melhor é supor que a música contém em si um potencial de expressividade que se encontra aberto ao nosso desejo de nela descobrirmos as nossas emoções, um desejo que é indesmentível e irrecusável. E que nós somos capazes de explorar essa expressividade da música, através dos sentimentos de prazer e de desprazer, de modo a fazer sentido dela.
Uma ida a um concerto mostra-o perfeitamente. Por vezes não conseguimos seguir bem a música: falta de concentração, de atenção, daquilo que fortifica a imaginação, inibição provocada pela situação artificial em que nos encontramos. Por mais habituados que estejamos a ir a concertos, essa artificialidade não deixa nunca de ser sentida, até porque faz parte das regras do jogo. Daí as tosses que se ouvem e outros vários pequenos sinais de incómodo e nervosismo. Por vezes conseguimos. Sabemo-nos orientar, por assim dizer, criamos expectativas que no essencial são preenchidas, satisfeitas. Com mais ou menos sucesso, conseguimos seguir os percursos da superfície musical. E, aqui e ali, graças à expressividade musical, descobrir emoções. Que não são arbitrariamente projectadas na música. Pode haver acerto. Aqui há tristeza, ali há alegria. Bem vistas as coisas, não é muito diferente do dia-a-dia. Excepto que é absolutamente diferente.