A partir dos anos 60 do século passado passou a ser comum, pescadores ou agricultores, sobretudo das zonas de praia do Algarve,” arrendarem” as suas casas,– normalmente pobres de mobiliário e conforto, mas situadas em cima da praia – a famílias das cidades durante os meses de Julho a Setembro. Com este “arrendamento” informal, melhor dito, com esta cedência onerosa atípica, estas famílias modestas, aumentavam o seu rendimento disponível anual. Não existiam transferências bancárias, nem recibos, claro. E para onde iam habitar nesses meses? Para casa de familiares, para construções rústicas dos seus terrenos agrícolas ou até para os espaços onde habitualmente guardavam as artes de pesca. Só as pessoas hoje com mais de 50 anos se lembram disto. Estávamos no tempo de uma sociedade menos complexa, os interessados eram sobretudo nacionais e a situação limitava-se a poucos meses em cada ano.

Nessa altura, poucos portugueses ainda tinham casa própria, pelo que os clientes dos pescadores, eram eles próprios inquilinos nas suas cidades de origem.

O efeito do congelamento de rendas habitacionais, que durou décadas em Portugal, teve um efeito pernicioso em ambas as partes do contrato de arrendamento. Os construtores passaram a construir para vender e não para arrendar, e os até aí inquilinos passaram a comprar a crédito o que não podiam arrendar, porque não existia sequer produto para essa finalidade.

Chegámos hoje à seguinte situação: Por um lado temos um país de proprietários de frações de prédios em propriedade horizontal, larga parte sem manutenção há muitos anos e que até já liquidaram os empréstimos das suas habitações adquiridas nos anos 80 e 90 do século passado. Por outro lado, temos uma larguíssima quantidade de empréstimos em curso, contraídos já no início deste século e que irão ser pagos ao banco durante décadas, sendo estes prazos tão alargados que mais se assemelham a um “arrendamento para a vida” que ao tradicional conceito de uma compra. Até aqui, longe de estar bem, pois sempre foi disruptivo, o sistema habitacional lá se ia aguentando.

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Ora o que vem mudar todo este modelo habitacional e o que fazer para conformar a lei, motivar o investimento e alterar a fiscalidade a esta nova realidade? Diagnósticos é sempre o que não falta. O problema é que normalmente ficamos pelos diagnósticos.

Como situações novas que tudo alteraram, temos: o turismo de massas – antes quase só dirigido às zonas balneares – passou a invadir as cidades e as tradicionais zonas residenciais; o alojamento local tornou cada habitação num aparthotel potencial; a fixação de rendas pelos proprietários em valor que os inquilinos nacionais pudessem pagar, não os compensa em relação ao que obtém pelo regime de alojamento temporário; o medo – é disso mesmo, medo – de arrendar uma habitação, não receber renda alguma e não existir um sistema judicial que devolva a habitação ao proprietário, para que ele a possa arrendar a outra pessoa que também precisa e até pode pagar essa renda; a especulação dos fundos imobiliários, que adquirem casas apenas para valorização do capital investido (as baixas taxas de juro pagas pelos bancos não compensam) e não para as utilizarem ou arrendarem. Ficam a valorizar vazias, tal como fica na garagem um carro clássico que compram, até que um dia o irão vender pelo dobro do preço.

O problema é que tratar a falta de habitação como se trata a ausência de qualquer outro produto do mercado irá seguramente ter como consequência uma convulsão social, como há muitos anos não conhecemos.

Quando é hoje corrente que muitos proprietários de casas com empréstimos já pagos ou mesmo em curso, se transferem permanentemente para parques de campismo para colocarem as suas habitações no regime de alojamento local, na perspetiva de duplicarem o seu rendimento – estão no seu direito, não é essa a questão –, todo o enquadramento social e legal com que nos movemos neste sector está absolutamente desadequado, diremos mesmo, está morto.

A lei anda sempre atrás dos acontecimentos e nunca à frente. Hoje, pessoas que fizeram o seu percurso escolar e profissional, sejam carpinteiros, médicos, professores têm a sua vida bloqueada porque não conseguem encontrar uma habitação, salvo a preços exorbitantes, seja para arrendar, seja para comprar. Simplesmente não os podem pagar. Portanto emigram, não constituem família, ou permanecem em casa dos pais – os que podem – e a demografia vai continuar a baixar, claro. Estamos a criar uma sociedade de hóspedes.

A ocupação ilegal de casas devolutas já se iniciou em várias cidades europeias e nomeadamente aqui tão perto, em Madrid. Dada a nossa periferia, chega-nos sempre tudo um pouco mais tarde. Diz-se que a natureza tem horror ao vazio. Ora, é melhor levar isso a sério.