A polémica estalou de imediato quando, no passado mês de Julho, a Direcção-Geral da Saúde utilizou, numa campanha para investigar as características da menstruação, a expressão “pessoas que menstruam” quando pareceria mais óbvio e consensual — e razoável, digo eu — usar a palavra “mulheres”. Escreveram-se artigos, ouviram-se pareceres científicos, os cidadãos tomaram posição nas redes sociais, agitaram-se as bancadas parlamentares. Em consequência disso o PSD pediu explicações à Ministra da Saúde, o Bloco de Esquerda pediu-as à Ministra da Juventude e Modernização, Margarida Balseiro Lopes, e foi esta última que, agora, mais de um mês após a polémica de Julho, respondeu, dando o seu aval à expressão “pessoas que menstruam”, preconizando a “utilização de linguagem neutra do ponto de vista do género para se referir aos produtos menstruais” e desencadeando uma segunda onda da mesma polémica.

Essa polémica, que vai remexer mais fundo do que parece, interessa-me, desafia-me a tomar posição e, sobretudo, inquieta-me. Trata-se de uma inquietação dupla que é, aliás, antiga. Há, por um lado, o problema desta novilíngua que nos querem impor, problema sobre o qual já escrevi vários artigos e que continua a preocupar-me não apenas pelo que representa, mas também pelo que promove em termos de subversão de conceitos e de atitudes. Não tenho a veleidade de, nesta questão concreta da menstruação, trazer aos que me leem ideias inéditas ou, sequer, importantes. Expliquei, no facebook, a minha aversão ou oposição à expressão “pessoas que menstruam” — e a minha decepção com a posição da ministra da Juventude e Modernização —, e várias pessoas vieram comentar e exprimir ideias mais interessantes, elaboradas e inteligentes do que as minhas. Há, todavia, uma segunda coisa que me inquieta nesta questão e foi ela que me levou a escrever este artigo. Falo da posição do PSD e do governo da AD, que, nestes mares encapelados parecem navegar sem rota certa ou perceptível por quem os observa de fora.

É verdade que houve vozes dentro do PSD — com destaque para a do deputado Bruno Vitorino — que vieram contestar a ministra Margarida Balseiro Lopes, sugerindo que ela estaria a falar apenas em seu nome próprio e não no do governo, e pedindo-lhe que se cingisse ao que está no programa desse governo em vez de se lançar em largos voos woke por coisas que lá não estão. Mas logo outras vozes no partido vieram respaldar a ministra, fazendo-o em termos para mim surpreendentes. Foi o caso do ex-eurodeputado Carlos Coelho, alguém que foi (ou é) politicamente próximo de Luís Montenegro, e que afirmou que “qualquer reacção contrária” à posição da ministra “é uma reação desagradável, com sabor do antigamente, de exclusão, de preconceito.” Acontece que essa “reacção contrária” à posição da ministra tem sido evidente em muitas centenas, provavelmente muitos milhares, de pessoas que apoiaram a AD — como é o meu caso — e que se manifestam contra a fraseologia de que a ministra, Carlos Coelho e outros/as gostam.

Há aqui, portanto, uma zona de contradição (e de atrito) entre os rumos do partido do governo e a sua base social de apoio, e há sobretudo perplexidade e incerteza quanto ao que, no plano da ideologia e dos valores, serão esses rumos. Ora isso não é bom. É verdade que, os partidos políticos democráticos e, por maioria de razão, os que agregam muita gente, albergam no seu seio várias correntes de opinião. Isso é inescapável. Contudo, neste caso estamos a falar de correntes opostas e, para além disso e acima disso, de uma inquietante indefinição ou pouca clareza da direcção do partido (e do governo) na área das chamadas guerras culturais. O problema é que não está clara a posição do partido relativamente à agenda woke. A sua falta de nitidez nessa matéria ou, pior, a frequente emissão de opiniões e decisões políticas de cariz woke vindas da gente que está ou esteve nas suas fileiras, de gente que lá milita ou militou, desgosta todo um sector da opinião pública que se considera não-woke ou anti-woke, empurra-o para propostas políticas mais claras e assumidas e terá contribuído, e muito, para o crescimento exponencial do partido Chega.

Em tempos, tendo em mente a questão das exigências de pedidos de desculpa e de reparações por factos ligados à nossa história colonial, pedi ao PSD e ao PS que esclarecessem o que tencionavam fazer naquilo a que chamei a “Era da Expiação”. Ambos os partidos preferiram ficar em silêncio. É justo reconhecer que o governo do PSD quebrou, e muito adequadamente, esse seu mutismo no dia 27 de Abril de 2024. Recordemo-nos que, no dia anterior, num jantar com jornalistas e correspondentes estrangeiros, Marcelo Rebelo de Sousa achara por bem comprometer o país em “reparações” por factos ocorridos na sua história colonial, ou seja, por crimes ou comportamentos/actividades que agora consideramos crimes. Reagindo rapidamente, o governo de Luís Montenegro veio assegurar que não existia da sua parte qualquer plano para proceder a reparações, e assim mostrou aos portugueses que não alinhava nas intenções e promessas woke do Presidente da República.

Ora, da mesma forma que, no final do mês de Abril, o governo sentiu necessidade de cortar o mal da incerteza pela raiz, talvez fosse agora importante que alguém com uma posição cimeira dentro desse governo e do partido — eventualmente, o próprio Luís Montenegro —, viesse dizer aos portugueses o que pensam os seus líderes a respeito do wokismo, da chamada linguagem inclusiva ou, mais simples e prosaicamente da substituição da palavra “mulher” pela expressão “pessoa que menstrua.” Não o fazendo poderá crescer a suspeita em muitas das pessoas que apoiaram a AD de que, debaixo dos seus silêncios, este PSD estará a abarrotar de wokes.

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