Parece um quadro tão insólito e tão alheio a Portugal que, exceptuando algumas reacções de surpresa e indignação nas redes sociais, a notícia passou relativamente despercebida entre nós, o que é pena porque nos diz respeito. Por isso, talvez valha a pena recuperá-la:

O governo de Barbados, nas Caraíbas, está a exercer grande pressão sobre um deputado conservador britânico para que ele ceda gratuitamente parte do terreno de uma plantação de cana-de-açúcar que herdou na ilha e que foi, em tempos idos, a maior propriedade local trabalhada por escravos. Se ele recusar, Barbados avançará para um tribunal arbitral internacional e, se ganhar, já avisou que fará o mesmo relativamente a quaisquer descendentes de brancos que tenham lucrado com o tráfico e a posse de escravos negros. É nesse grupo de potenciais demandados na justiça que entra Benedict Cumberbatch. Um antepassado seu comprou uma plantação no norte da ilha em 1728 e essa plantação, que se manteve longamente na posse da família, foi trabalhada por escravos negros até 1834, isto é, até a escravidão ter sido proíbida nas colónias britânicas. Como Benedict Cumberbatch é um conhecido actor de cinema a intenção litigante de Barbados chegou com fragor aos órgãos de comunicação social.

Há décadas que governos e organizações não-governamentais caribenhas procuram obter, através da pressão política ou por via judicial, indemnizações e compensações pelo facto de ter havido escravatura nessas ilhas. A coisa é absurda por múltiplas razões de que destaco duas que me parecem mais importantes:

1- É inconcebível querer aplicar retroactivamente a lei que, hoje em dia, condena e pune a prática da escravidão a pessoas que viveram num tempo em que assim não era, porque possuir uma plantação trabalhada por escravos em Barbados, no século XVIII, por exemplo, era algo inteiramente dentro das normas então vigentes não apenas na Grã-Bretanha, a potência colonial que administrava a ilha, mas também — com a excepção pontual e fugaz da França, no final desse século — em todas as outras nações e partes do mundo;

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2- Por maior força de razão é ainda mais inconcebível pretender estender essas intentadas condenação e punição retroactivas aos actuais descendentes desses supostos prevaricadores longínquos.

Há várias outras razões que de um ponto de vista histórico, lógico e, suponho eu, jurídico, tornam inconsistente a projectada acção em tribunal contra descendentes de antigos senhores de escravos apenas pelo facto de o serem, mas estas duas bastam para percebermos que estamos perante uma situação a tal ponto aberrante que não parece provável que algum tribunal superior ocidental venha a condenar Benedict Cumberbatch ou outras pessoas em idênticas circunstâncias.

Mas pouco provável não significa impossível, até porque nestes tempos de absurdos moralismo e anacronismo nada se pode excluir. Há, sobretudo nos Estados Unidos, mas também no Brasil, no Reino Unido e noutros países, uma espécie de macarthismo woke que galopa à rédea solta impelido por gente cada vez mais fanática, mais ignorante e intolerante, mais intoxicada pela crença milenarista de que é possível corrigir e compensar os males não apenas do mundo presente — o que, dentro de certos limites, é positivo e louvável —, mas também de mundos há muito passados.

Nesses países e nessa lógica milenarista a questão da antiga escravatura tornou-se central, verdadeiramente obsessiva, maníaca, e os temas das indemnizações, reparações e condenações póstumas (políticas e judiciais) por supostos crimes que ainda o não eram estão na ordem do dia. A filosofia da coisa é, em termos simples, a do lobo e do cordeiro: se não foste tu foi o teu pai, e irás pagar por ele pois alguém terá de pagar, e muito. Tentei chamar a atenção para o facto de o pagamento ser o objectivo final de tudo isto logo num dos primeiros artigos que escrevi sobre o tema, em 2017.

Por isso, a pergunta que se coloca, neste tempo de imitação pacóvia e acéfala, e de globalização dos comportamentos, é a seguinte: este novo macarthismo ainda incipiente em Portugal conseguirá impor-se no nosso país? É uma pergunta que faz todo o sentido porque se olharmos em nosso redor damo-nos conta de que lidamos com um horizonte bastante indefenido, o que, neste contexto é inquietante. Sabemos, claro está, a posição do Chega e, com menos clareza, a do CDS, bem como o que pensa (e deseja) a extrema-esquerda a este respeito, pois o Bloco, o Livre e alguns sectores do PCP têm sido os grandes arautos e promotores do wokismo indígena. O Partido Socialista parece inclinar-se no mesmo sentido, ainda que de forma menos nítida e monolítica. É certo que algumas das suas figuras são francamente adversas à cultura woke — Sérgio Sousa Pinto, por exemplo —, mas a maior parte dos que se pronunciam ou agem politicamente nesse âmbito são-lhe favoráveis. Subsiste, ainda assim, uma grande zona de silêncio conivente ou temeroso, até porque em 2015 o PS de António Costa entregou essa área de intervenção política e ideológica à extrema-esquerda (e incluo nessa designação tanto a que lhe é exterior como a que alberga dentro de si).

É preocupante saber que esse silêncio também existe, e de forma mais marcada e mais espessa, no PSD. Rui Rio entrou pontualmente no território de caça do wokismo quando considerou que não havia racismo em Portugal, mas as principais figuras do partido têm-se mantido silenciosas sobre essa e outras questões conexas como se nem soubessem que elas existem. Esse silêncio é muito pouco tranquilizador porque revela pelo menos uma de três coisas: ou um grande alheamento; ou o receio de assumir um compromisso político claro; ou, então, uma concordância com as metas do wokismo, pois quem cala consente.

Esta última hipótese não é disparatada e ganha alguma probabilidade quando vemos a direita noutros países da Europa embarcar claramente na agenda woke. No passado dia 19 de Dezembro, Mark Rutte, o Primeiro-Ministro dos Países-Baixos, discursando no Nationaal Archief — os arquivos nacionais, em Haia — pediu formalmente desculpa pelo envolvimento do país na escravidão e no tráfico transatlântico de escravos, não obstante terem ambos sido há muito condenados, ilegalizados e extintos no seu país (o tráfico em 1814, a escravidão em 1863). Rutte declarou, também, que o seu governo irá criar um fundo de compensação para financiar projectos e actividades em países onde vivem descendentes de escravos, mas pôs de lado a hipótese de vir a pagar indemnizações. Todavia, vários activistas já avisaram que as promessas de Rutte são insuficientes. Houve, até, quem lhe chamasse “verborreia neocolonialista”. Se se reconhece que foram cometidos crimes contra a humanidade — dizem —, então as indemnizações são a consequência lógica e inescapável.

No Reino Unido a posição do governo ainda não é a de Rutte. Durante a campanha eleitoral Sunak prometeu, aliás, combater os disparates da cultura woke. Mas promessas leva-as o vento e há muita gente na direita britânica claramente alinhada com o wokismo, como quem ler a imprensa local saberá. Basta ouvir as opiniões de Lord Vaizey, ministro da Cultura nos governos de David Cameron, para perceber em que águas navegam os Conservadores.

É certo que o mundo meridional e católico, a que Portugal pertence, não é exactamente igual ao dos países do norte, de predominância protestante ou ateísta, como são os casos do Reino Unido e dos Países Baixos. Ainda assim, seria bom que a nossa direita moderada e a parte silenciosa do PS se definissem, que se exprimissem, para podermos saber em que águas navegam porque o pensamento politicamente correcto proliferou, deu origem, no Ocidente, a uma espécie de Era da Expiação, e tarde ou cedo as consequências do macarthismo woke — isto é, os cobradores (com ou sem fraque) — virão bater à nossa porta. Irão PSD e PS abri-la de par em par ou pôr trancas nessa porta?