Pelo que vou lendo a febre de demolição ou remoção de estátuas e outras representações do passado continua muito alta nos Estados Unidos e tudo o que tenha, ainda que apenas vagamente, uma relação com a antiga escravatura está em risco de vir abaixo ou de ser retirado do espaço público. O último episódio do género que chegou ao meu conhecimento foi o derrube de Silent Sam, a estátua que existia há mais de cem anos no campus da Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, e que se destinava a homenagear a memória dos estudantes locais que lutaram e morreram pela Confederação, na Guerra da Secessão. Esse ataque à estátua daquele “soldado desconhecido” aconteceu há poucos dias, a 20 de Agosto, e foi liderado por uma aluna de doutoramento chamada Maya Little, que já em Abril se tornara notada por ter despejado uma mistura de tinta vermelha e do seu próprio sangue sobre Silent Sam. Quem tiver interesse na actuação de Maya Little e restantes activistas no derrube da estátua pode ver este filme dos acontecimentos.
Ao mesmo tempo que se derrubam estátuas, removem quadros, destroem pinturas, rejeitam antigas denominações de edifícios, faculdades ou ruas, com o alegado propósito de combater o racismo, erigem-se novos símbolos, forjam-se novas narrativas, modificam-se velhas representações com o intuito de trazer mais personalidades negras para a primeira linha da evocação e memória nas nossas sociedades. O exemplo mais conhecido desse esforço será, talvez, a proposta de substituição da imagem do presidente Andrew Jackson pela de Harriet Tubman, nas notas de 20 dólares. Tubman nasceu escrava, no Maryland, mas adquiriu a liberdade através da fuga para a Pensilvânia e, depois, tornou-se uma abolicionista de grande militância e coragem. É discutível que a evocação dessa figura histórica deva ser feita a expensas de Andrew Jackson, mas é sem dúvida justo que ela seja lembrada nos Estados Unidos e no mundo.
Sucede, porém, que nem sempre estes esforços de memória são justos e proporcionados e nesta voragem de compensações por antigas desigualdades vai-se com frequência longe de mais. Querem um exemplo? Quase na mesma altura em que, em Chapel Hill, se deitava abaixo a estátua de Silent Sam, em Nova Iorque uma parte da Rogers Avenue estava a ser rebaptizada como Jean-Jacques Dessalines Boulevard. Dessalines, para quem o não saiba, foi um escravo que tomou parte na grande revolta de 1791, na colónia francesa de São Domingos, e que, já livre, chegou a lugar-tenente de Toussaint Louverture. Quando Toussaint foi preso, em 1802, seria Dessalines a liderar os ex-escravos contra os exércitos napoleónicos e seria ele que, a 1 de Janeiro de 1804, vencida a guerra, declararia a independência do Haiti, do qual viria a ser governador-geral e, depois, imperador. E sabem qual foi um dos primeiros actos do seu governo? Foi a chacina dos brancos que ainda residiam na antiga colónia francesa. Milhares de pessoas, homens, mulheres e crianças, terão sido executadas, e muitas delas previamente torturadas, nessa ocasião. Ou seja, Dessalines ordenou aquilo que, na época, foi chamado massacre e que, em terminologia moderna, chamaríamos genocídio e crime contra a humanidade. Tratou-se de uma acção de impiedosa vingança, uma espécie de solução final avant la lettre. Ora, é este cruel e sanguinário personagem do passado que agora tem direito a ser lembrado e homenageado numa avenida de Brooklyn, na cidade de Nova Iorque.
O que é mais importante notar aqui é que os espíritos politicamente correctos que celebram esse acontecimento de Nova Iorque são os mesmos que vibram com o derrube da estátua de Silent Sam. As pessoas que aplaudem uma coisa aplaudem a outra, com as mesmíssimas mãos e sem verem nesse aplauso qualquer engulho ou contradição. Mais. Os que agora rejubilam com a homenagem feita a Jean-Jacques Dessalines por ser um escravo negro que se revoltou contra a escravatura (escondendo pudicamente que, de caminho, e já depois da guerra travada, mandou matar milhares de brancos) são os mesmos que atacam a memória de Thomas Jefferson por ter sido um branco que possuía escravos. Daria vontade de rir se não fosse trágico.
E é trágico porque o Ocidente está doente, minado por dentro. Há um processo revolucionário em curso de que muita gente ainda não se deu conta. Esse processo, sobre o qual já escrevi por diversas vezes, tenta levar a cabo uma transformação cultural. Como? Pela via suave e gradual da linguagem, da censura e do ensino, na convicção de que se se modificarem as designações das coisas e as imagens que as evocam e representam, se mudará rapidamente a realidade presente. Ou seja, essa revolução em curso não está a ser feita de armas na mão, mas sim nas salas de aulas das escolas e universidades ocidentais. É sobretudo aí que professores e alunos mais ou menos próximos do marxismo, encontram campo fértil para difundir o seu pensamento e bloquear o pensamento dos opositores, sob a insidiosa e venenosa forma do politicamente correcto.
Portugal não está imune a isso. Aliás, vários dos nossos académicos e dos nossos estudantes reproduzem os modelos e os procedimentos que lhes chegam dos Estados Unidos, e por isso a guerra das estátuas e das designações também já nos veio bater à porta, ainda que em forma atenuada. Mas quem não se lembra das prédicas contra a estátua do Padre António Vieira? Quem não reparou que ainda há pouco se sugeriu a construção, em Lisboa, de uma estátua da rainha Njinga? Por enquanto são leves aromas de radicalismos externos, mas como estas coisas funcionam largamente por imitação é bom que nos mantenhamos atentos e que nos vamos preparando para enfrentar o pelotão dos que querem destruir as imagens de certas figuras históricas e substituí-las pelas de outras, mesmo que de antigos torcionários, apenas porque têm, num caso e no outro, e na vesga visão de cabeças radicalizadas, uma cor de pele errada ou certa.
João Pedro Marques é historiador e romancista