Faço fisioterapia há oito meses num hospital público em Lisboa. É um dos melhores, e estava previsto o Papa ir lá de emergência se fosse preciso durante a sua estada na Jornada Mundial da Juventude. Para chegar à minha fisioterapia, percorro sempre um longo corredor. Por volta de sete ou oito vezes, especialmente nos meses quentes do verão, tenho visto baratas mortas quando passo. Uma vez, uma estava ainda a mexer as pernas.
Uma médica amiga disse: “Se esses são os bichos grandes à vista, então imagina os bichos que não se veem.”
Imagino bem, pois faço fisioterapia há um ano precisamente por causa destes bichos pequenos que não se veem. Noutro hospital público em Lisboa, também de boa reputação, entrou na agulha epidural, e portanto nas minhas costas, uma das bactérias hospitalares mais agressivas: a MRSA. Fez infecção, uma bola de pus do tamanho da minha mão, no espaço epidural. Fui operada e fiquei paraplégica, mas por vários milagres sucessivos agora estou muito melhor e já ando. Ainda estou à espera para ver se o hospital me dá algum género de indemnização. Espero sentada. Gostaríamos também de saber os resultados duma investigação do estado de assepsia que o hospital ia fazer.
Um médico amigo, que já fez bancos neste hospital onde tive a minha bebé, diz que o hospital não tem condições de assepsia. Noutro hospital, 11 bebés foram colonizados com uma bactéria multirresistente e a maternidade foi fechada em julho deste ano. Um bebé morreu, talvez relacionado ou não com a bactéria.
Quem me administrou a epidural foi uma interna, sem a supervisão que deveria ter, de acordo com o protocolo) de um médico especialista. Uma enfermeira assegurou-me que não foi isto que aconteceu. No entanto, este mesmo amigo que já fez lá bancos disse que era comum não haver o número protocolado de especialistas sempre de banco. Qualquer médico no sistema público tem experiência de internos por vezes fazerem mais do que devem.
No inverno passado, só 27 de 41 maternidades em Portugal estavam em pleno funcionamento. Os obstetras demitem-se em massa. Sara do Vale, presidente da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, falou numa “subida da taxa de mortalidade materna, uma subida das taxas e cesariana e das intervenções em geral” neste ano.
Portugal já tem uma das taxas de natalidade mais baixas do mundo. A saúde no parto e pós-parto é um indicador usado para avaliar o nível de qualidade de vida dum país.
Que faz o governo em relação a esta crise no sistema de saúde? Piora sempre as condições e salários, provocando greves constantes de médicos e profissionais de saúde. Especificamente relacionado com a obstetrícia, lança uma Orientação 2/2023 da DGS que acaba por limitar centros de parto e partos em casa. Na última década, tem-se assistido a um crescente interesse num parto mais humanizado, fisiológico e natural. Alguns hospitais públicos têm-se organizado no sentido de alinhar-se mais com esta tendência. No entanto, Portugal é um dos poucos países que não tem centros de parto e tem das taxas de cesarianas mais altas do mundo. Em 2019, rondava os 30% no público e os 70% no privado.
O obstetra Diogo Ayres de Campos, ex-diretor do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução (DOGMR) do Hospital Santa Maria, deu uma entrevista em 2015 em que explicou os riscos acrescidos duma cesariana e desmistificou a ideia de que promove a saúde de mães e bebés. Disse: “Os países do norte da Europa têm taxas de cesariana que são metade da que temos em Portugal e têm os melhores indicadores em termos de mortalidade dos bebés e das mães.”
Enquando coordenador da Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e bloco de partos, em conjunto com a Direção-Geral da Saúde, sugeriu a norma, não vinculativa, de que enfermeiros especializados pudessem proceder ao internamento de grávidas e assistir a partos de baixo risco. Os médicos opuseram-se e a própria Ordem dos Médicos pediu o afastamento do médico deste grupo de trabalho.
Isto veio no contexto de as maternidades fecharem por falta de médicos. Ayres de Campos tinha defendido publicamente que o modelo de encerramentos rotativos de maternidades traçado pela DE-SNS não era “defensável num país europeu” e tinha de ser temporário.
Disse Mário Macedo, enfermeiro especialista em saúde infantil, na sua conta do X, que Diogo Ayres de Campos “ousou dizer o óbvio: a produção de cuidados de saúde em Portugal é arcaica e demasiado centrada nos médicos”. E ainda, “O corporativismo faz mal à saúde. Não seremos livres enquanto o direito à opinião e a vontade de melhorar for castigada”.
Finalmente, enquanto diretor do DOGMR do Hospital Santa Maria, Ayres de Campos questionou a necessidade de encerrar a maternidade do Hospital Santa Maria por obras. Pois as obras eram externas ao edifício central e ao serviço. Questionou, por carta, subscrita por 34 de 37 dos médicos do serviço, se os serviços prestados no Hospital São Francisco Xavier iriam garantir a qualidade de excelência, e manifestaram a preocupação com sobrelotação.
Em seguida, foi afastado das suas funções, juntamente com a diretora do serviço de obstetrícia. A razão dada foi por “colocar em causa o projeto de obra e o processo colaborativo com o Hospital São Francisco Xavier, durante as obras da nova maternidade.” Não foi por nenhum erro técnico, nem médico, nem por incumprimento de funções, mas foi por questionar. A Presidente da Federação Nacional de Médicos, Joana Bordalo e Sá, acusa o Governo de intolerância face às críticas.
Mais de uma dezena de profissionais se demitiram dias depois de este médico ter sido afastado. Tinham primeiro pedido ao ministro da Saúde uma intervenção para que a direção afastada, no seu ver injustamente, fosse readmitida.
Ayres de Campos comentou que o afastamento demonstra “desrespeito pelo mérito, pelo esforço técnico cientifico das pessoas, mas também um desrespeito pelo departamento”. E ainda, “Se há uma descrença nestes aspetos, as pessoas sentem que não vale a pena lutar pelo SNS (…). Não é assim que se retém talento em Portugal”.
O que acontece a um médico que tem ideias diferentes das vigentes, num sistema em crise e a precisar de soluções novas? É afastado. Sei por experiência própria, que as “melhores” maternidades do governo carecem de condições e de recursos humanos. Cometem erros e não admitem nem ajudam que sofre com isso. Mulheres grávidas cada vez se sentem com menos opções. Não admira a taxa de cesarianas estar sempre a subir e a taxa de natalidade estar sempre a descer. Este país não é para bebés.