Ainda não se tinha dissipado o fumo do tiroteio em Uvalde, Texas, no dia 24 de maio, que matou 19 alunos e 2 professores, e eis que um rapaz de 21 anos choca de novo o mundo com outro tiroteio no dia 4 de julho. Voltou a acender o debate nos Estados Unidos, cada vez mais agressivo e partidário, sobre o direito a posse de armas.

Será que o problema dos tiroteios nos Estados Unidos é só um problema material de acesso a armas, que requer uma solução material, de reduzir as armas, ou podemos fazer outro tipo de perguntas?

No final do documentário Bowling for Columbine de Michael Moore, ele questiona se a violência nos Estados Unidos, especificamente com armas de fogo, não será uma questão mais profunda e cultural, visto que o Canadá também tem muitas armas, mas não violência. Até Michael Moore, da esquerda política e contra o direito de posse de armas, aponta para um problema e uma solução não material, mas cultural.

Os tiroteios são um fenómeno recente nos Estados Unidos. O primeiro (com quatro ou mais vítimas, sem ligação a drogas ou crime) foi em 1989 em Stockton, California. Columbine chocou o mundo em 1999. Têm vindo a aumentar, os mais mortíferos sendo Virginia Tech em 2007 e Sandy Hook em 2012. (gráfico)

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Fonte: Mother Jones

A posse de armas de fogo não é recente, é tão antiga como o país. A percentagem de armas de fogo em casas americanas é igual à de há cinquenta anos, por volta dos 40%. (gráfico) Há, e sempre houve, mais armas nos Estados Unidos do que no resto do mundo inteiro.

Em Portugal e em muitos países, há um enaltecimento da cidade em detrimento do rural. Nos Estados Unidos, nunca foi assim: há mais pessoas que vivem com muito terreno, mais afastados, longe de esquadras de polícias. Na fundação do país, quando se expandiam para Oeste, isto sentia-se ainda mais. Ocupavam territórios que não tinham sido ocupados antes e seria impensável andar sem armas de fogo. Até as mulheres e crianças, quando ficavam em casa sozinhas, sabiam usar a arma da casa se fosse preciso.

Os mitos sobre armas de fogo são inúmeros. Há muita conversa sobre banir armas de assalto (“assault weapons”), quando na verdade não existe definição para tal termo. Uma arma de assalto pode ser uma faca, um taco ou uma pistola. Na sua maioria, as armas que existem nas casas de cidadãos americanos, são semiautomáticas, desde pistolas a revólveres. A espingarda semiautomática AR-15 não é uma arma de guerra, apesar de o parecer. Os militares usam uma versão de guerra, que é ilegal para cidadãos. Só militares e polícias, mesmo nos Estados Unidos, podem ter armas automáticas, como metralhadoras, por exemplo. Os revólveres e pistolas são as armas de fogo mais usadas para homicídios nos Estados Unidos. Mortes por semiautomáticas como a AR-15, que não sejam revólveres e pistolas, correspondem a 4%.

Os Estados Unidos são o número dois em taxas de suicídio mas não estão na lista dos 10 primeiros em taxas de homicídios. Mais que metade das mortes por arma de fogo nos Estados Unidos são suicídios. Os Estados Unidos são o número 22 numa lista de países com homicídios por armas a comparar com posse legal de armas. O México é o número 1. Ou seja, há mesmo muitos cidadãos americanos com armas legais, e sempre houve. E poucos homicídios em relação a esse número de armas.

Já podemos abrir a conversa para outros aspetos não materiais da questão: aspetos culturais e psicológicos?

O que é que todos os atiradores têm em comum? São rapazes, entre 14-24 anos.

Este dado está entre uma miríade de dados que apontam para os problemas a aumentar cada vez mais nos últimos anos com rapazes e homens novos. Pelo mundo inteiro, os rapazes têm 50% menos probabilidade de obter competências básicas em leitura, matemática e ciências em comparação com as raparigas. Têm menos entrada e sucesso universitário. Têm mais diagnósticos, cada vez a aumentar, de ADHD. À medida que se tornam adultos, as taxas de suicídio vão de igual para seis vezes mais do que mulheres jovens.

Warren Farrell, autor de vários livros sobre o assunto e TEDx Talks, escreveu um livro The Boy Crisis onde descreve estes dados e aponta para uma causa: falta de pai presente. As prisões, especialmente, estão cheias de homens que não tiveram pais presentes nas suas vidas. Um pai presente, ou figura paterna como tio ou professor, especialmente na adolescência, ajuda a baixar todas as estatísticas de insucesso escolar, uso de drogas, prisão e até agressão como tiroteios.

Como diz no site do Boy Crisis (boycrisis.org), “É uma crise de propósito. O antigo sentido de propósito de rapazes – ser guerreiro, líder ou ganha-pão – está a desvanecer-se. Muitos rapazes inteligentes estão a sentir um vazio de propósito, sentem-se alienados, retirados e viciados em gratificação imediata.”

O atirador do dia 4 de julho vivia com os pais, mas os dados indicam uma vida familiar extremamente invulgar e disfuncional. Era frequentemente deixado na escola, sem o virem buscar, depois do horário.  A polícia ia lá a casa por causa de brigas entre os pais. Em abril de 2019, houve uma chamada por tentativa de suicídio dele. Em setembro do mesmo ano, um membro da família ligou à polícia a dizer que o atirador “disse que ia matar toda a gente” e tinha uma coleção de facas. A polícia apreendeu 16 facas, um punhal e uma espada, mas acabou por os devolver porque o pai disse que eram dele e que as tinha guardado no armário do filho. Tentaram tirar-lhe a licença de porte de armas (FOID card), só que ele não a tinha. Após três meses, o atirador iniciou e depois passou os testes para posse de armas, com a ajuda e assinatura do pai.

Não tinha amigos e todos o descreviam como solitário. Não tinha trabalho e passava o dia ao computador. Nas semanas antes do ataque, postou dezenas de vídeos na internet com canções assustadoras. Incluíam imagens ou desenhos dele, com armas na mão e mensagens ameaçadoras como “Tudo me levou a isto. Nada me pode parar, nem eu próprio.”

O atirador de Uvalde, Texas, tinha 18 anos e, esse sim, não via nem falava com o seu pai há dois anos. Depois do tiroteio, o pai disse, “Sinto muito pelo que fez o meu filho. Nunca esperei que ele fizesse uma coisa destas. Ele devia ter-me matado a mim, em vez de fazer uma coisa assim a alguém.”

As características destes atiradores, que partilham com a maioria de outros atiradores, refletem algumas mudanças bruscas nos últimos 50 anos: a quebra da família (a taxa de divórcios aumentou dramaticamente até 1981 e o número de casais a coabitar sem casamento aumentou dez vezes desde 1970), aumento de solidão e taxas de suicídio, declínio de filiação religiosa, amizades e de redes de apoio. Atiradores têm frequentemente uma família disfuncional, quase sempre sem pai nem figura paterna na sua vida, sem igreja nem comunidade e sem amigos verdadeiros, a não ser os das redes sociais. Este não é um perfil único, mas uma forte acusação à cultura que vamos construindo.

Existem muitas armas de fogo e homens de 18 e 21 anos na posse de armas de fogo há mais de dois séculos nos Estados Unidos. Disparar sobre desconhecidos inocentes num desfile de 4 de julho ou entrar numa escola para matar crianças inocentes que não se conhece de lado nenhum é um fenómeno recente. É preciso ter uma perturbação psicológica bastante grave para o fazer. Talvez a pergunta não deva ser: como é que uma pessoa maluca teve acesso a armas? Qualquer pessoa de bom senso estará de acordo que pessoas com problemas psicológicos não deveriam ter acesso a armas. A pergunta mais adequada será: porque é que estão tantos jovens malucos? Em particular, rapazes novos?