Em 2014 na Conferência Gulbenkian apresentei um artigo (com L. Teles Morais) sobre estratégia orçamental para 2020, intitulado “Renovar a Esperança”. Nesse mesmo ano analisámos e criticámos (com Ricardo Cabral) a estratégia orçamental do então governo PSD-CDS, em particular do Plano de Estabilidade 2014-2019. Nesta sequência, surgiu agora o estudo “Estratégias Orçamentais 2017-21”, da autoria de R. Cabral, L. T. Morais, Joana Vicente e o autor deste artigo, que teve um alargado debate no espaço público. Sugere-se na nossa análise que é possível ambicionar mais na política orçamental. Muito se escreveu e disse na imprensa escrita e online, desde encómios, passando por críticas e análises, até ligeiras insinuações. Felizmente, vivemos numa sociedade aberta e livre em que tudo, e o seu contrário, pode ser dito, tendo-se lido ou não o estudo. Importa, sobretudo, clarificar o objeto do estudo e desmistificar algumas ideias que têm sido veiculadas.
1. Alternativa ou Variante ao Programa de Estabilidade (VPE)? Apesar de muitos terem lido a proposta como uma “alternativa”, que seria oposta à estratégia do Governo, o que foi apresentado é uma “variante”. Isto porque existe uma semelhança, quer nos objetivos de consolidação orçamental em todo o período, quer nas metas para 2017 e 2018. As diferenças entre o Programa de Estabilidade e a Variante apresentada são essencialmente duas: a atualização dos valores dos consumos intermédios e pessoal para 2017 (que obviamente não poderiam ter sido antecipados em março); e objetivos diferentes para o défice orçamental em 2019-21 que pensamos mais realistas e socialmente viáveis, embora mesmo assim bastante exigentes.
2. Paulo Trigo Pereira contra Mário Centeno? Primeiro, o trabalho foi coletivo e não apenas de um dos autores. Depois, é natural que Mário Centeno, Ministro, tenha apresentado um Programa de Estabilidade que cumpre todas as regras de Bruxelas. A nossa proposta cumpre a regra da redução da dívida, mas não cumpre uma regra (a da melhoria do saldo estrutural) cuja aplicação é técnico-política, e argumentamos que não deve ser cumprida. O melhor apoio que posso dar ao governo em geral e a Mário Centeno em particular é fazer cálculos, de forma totalmente independente do Ministério das Finanças (MF), para que eventualmente possam ser refutados ou confirmados pelo MF. Não concebo a ação política que não se baseie em análises técnicas sujeitas a escrutínio público.
3. A estratégia orçamental proposta é despesista? Dois equívocos. Primeiro, não apresentamos uma proposta, mas sim um cenário base, central, a partir do qual são possíveis escolhas políticas. Mesmo no nosso cenário base, o peso do Estado na economia (medido pelo peso da despesa no PIB) diminui, embora não tanto como o proposto pelo governo. Há vários anos que mantenho um debate com reputados economistas da área do PSD, como Miguel Cadilhe, sobre o que deve ser e o que pode ser o peso do Estado na economia (poderão ver o meu artigo e seu comentário na conferência Gulbenkian de 2014 (1). Aquilo que nos une é que ambos concordamos que deve haver a prazo uma diminuição do peso do Estado e do nível de fiscalidade, mas o que nos divide é que Miguel Cadilhe considera (como o PSD e o CDS) que essa diminuição pode ser rápida e eu considero (como o PS) que terá de ser lenta e associada em grande parte ao crescimento económico.
4. Os autores propõem maiores défices. Errado duplamente. Propomos saldos orçamentais sempre melhores (!), mas a consolidação orçamental não é tão rápida, nem visa o mesmo objetivo a prazo do que o do governo. A despesa pública no nosso cenário base cresce, em termos nominais, 9,2% entre 2017 e 2021. Em termos reais (usando o deflator do PIB) cresce apenas 0,8% por ano entre 2017 e 2021, abaixo, por conseguinte, do crescimento do PIB potencial nesse período. Ou seja nós fazemos contenção relativa da despesa pública. A melhoria dos saldos orçamentais, até certo ponto, é condição necessária, mas não suficiente para resolver o problema da dívida. Dois dos autores (RC e PTP) têm defendido a necessidade de renegociar a dívida, algo que, porém, não está neste estudo. Acompanham assim diferentes propostas de reputados economistas, como De Grauwe, Stiglitz, Pâris e Wyplosz, Eichengreen, Rogoff e Reinhart, que defendem que é necessária uma solução europeia para a dívida. Ou seja, para estes economistas, e para nós, o país não deverá resolver o problema das dívidas excessivas apenas com contenção da despesa, e melhoria dos saldos, como advogam alguns críticos do nosso estudo.
5. A esquerda defende os serviços públicos, a direita quer dar prioridade à baixa da carga fiscal. Esta crítica não é ao estudo em si, que é técnico e não político, mas sim à entrevista que dei à Rádio Renascença, parcialmente reproduzida no Público. O estudo mostra algumas opções de política que consideramos realistas económica, social e politicamente. Obviamente, há alternativas que passariam por reduzir mais o nível de fiscalidade. Nesse caso não haveria verbas, por exemplo, para pagar a fornecedores na saúde, nem para descongelar carreiras na função pública. É aqui que entram (apesar de não serem desenvolvidas no estudo) as opções de política. A esquerda, desde logo o governo PS, inscreveu no seu programa este descongelamento. A opção da direita teria sido outra, a de só repor os cortes salariais em quatro anos. A questão não é se devemos reduzir a carga fiscal — claro que sim, devemos — mas a que ritmo, e quais as prioridades imediatas. E aqui naturalmente que as prioridades políticas de esquerda e direita não são, nem devem ser, as mesmas. Mal estaríamos se fossem idênticas.
6. O problema não é a dívida pública, é a dívida externa. Pedro Braz Teixeira no ECO, falha o alvo nas suas críticas por várias razões. Primeiro, assume que este estudo é sobre o crescimento económico português quando é sobre estratégia orçamental a prazo. Depois, porque habilmente tenta dissociar a dívida pública da dívida externa usando o caso de Itália, onde grande parte da dívida pública é a residentes (interna) logo nesse país são duas realidades distintas. Porém, como o estudo sobre dívida pública e externa, realizado por economistas do PS do BE e independentes, demonstra, em Portugal não é assim. Não só boa parte (37%) da dívida externa é dívida publica, como ao longo dos anos o peso da dívida pública na dívida externa tem aumentado. Assim sendo, torna-se claro que é condição necessária, apesar de não suficiente, para a redução da dívida externa a redução da dívida pública. O que não quer dizer que não devam ser tomadas medidas para evitar o desequilíbrio das contas externas no futuro, nomeadamente, na componente não pública.