Se não me falha a memória, que já vai um pouco turva (um pouco de ficção é até capaz de ter o benefício de temperar a história), era Verão e eu estava de férias a passar o dia com o meu pai no seu local de trabalho: o Instituto Superior Técnico (IST). Isto ter-se-á passado há uns bons 30 anos. Eu andaria a entreter-me a fazer contas de quantos alunos estariam inscritos no IST, provavelmente num Sinclair ZX Spectrum 48k (quem se lembra!?). Mas havia qualquer coisa nos meus números que não batia certo. Ao sairmos e em passando perto da cantina, constatei que esta estava relativamente cheia. Mas, tratando-se de um dia de Verão e em que a maioria dos alunos já estaria de ferias, como é que isso se justificava? Foi aí que o meu pai me terá explicado que o número de alunos inscritos versus o número de alunos que estavam de facto a fazer o curso contava uma realidade obscura: muitos dos inscritos eram-no apenas para ter acesso aos serviços de acção social, nomeadamente acesso a uma refeição barata na cantina. Uma grande parte destas pessoas nunca iria acabar (ou sequer tentar acabar) os seus cursos. Estavam inscritos e assim permaneciam porque um regime de prescrições relaxado (penso que, entretanto, ligeiramente melhorado, mas não o suficiente) assim o permitia.

A história anterior, mesmo admitindo que tenha sido distorcida pelo tempo tornando-se estória, expõe ainda assim um retrato bem real da nossa cultura, à Portuguesa, que é despesista e pouco sustentável. Não é minha intenção discutir a veracidade e actualidade da história acima, nem as virtudes deste fenómeno do ponto de vista social (que até os teria), mas tão simplesmente explicar que a minha preocupação com a sustentabilidade do ensino superior já tem a duração de uma vida. Há que responsabilizar aqueles que mais directamente beneficiam do ensino superior, e ser responsável perante a realidade sócio-económica dos alunos, das suas famílias, e da comunidade em geral. É neste aspecto que as propinas podem desempenhar um aspecto relevante. Curiosamente, o Observador noticiava há um ano uma manifestação de uma centena de estudantes, que aconteceu às portas da Assembleia de República, em que estes pediam, entre outras coisas, o fim das propinas nas instituições de Ensino Superior público em Portugal. Também o governo de António Costa optou pela via da redução de propinas em 2019, com os óbvios custos acrescidos para os contribuintes e ignorando que há outras despesas bem mais importantes. Mas será que, tal como discutido nos excelentes ensaios de António Homem Cristo (aqui), José Ferreira Gomes (aqui) e Luís Campos e Cunha (aqui), é mesmo em direcção às propinas ‘zero’ que devemos caminhar?

Tomemos o caso do Reino Unido, em que as propinas para frequentar um curso superior são bem superiores às praticadas na generalidade dos cursos na Europa: 9250 libras anuais, e isto para um cidadão britânico. Mas será que as propinas são mesmo assim tão desligadas da realidade social? Recentemente, o The Guardian (jornal com inclinação de esquerda) publicou um artigo em que se defende que baixar as propinas não é necessariamente uma boa notícia: nem para as Universidades (evidentemente), nem para os estudantes (!).

Já em Portugal, o ano de 2021 viu ser estreada uma licenciatura com propinas sem precedentes (Medicina na Universidade Católica) – 16 250 euros por ano – um valor “bastante abaixo dos valores internacionais”. No entanto, este contraste entre propinas praticadas entre público e privado (no caso, concordatário) só evidencia que o custo real de um aluno é bem superior aos 697 euros de propinas anuais actuais, pelo que a diferença – que não é desprezável – tem que ser absorvida por algum lado. Com base numas contas rápidas (ver final do artigo), é razoável acreditar que o custo real médio para o Estado de um aluno no ensino superior público ronde os 7000 a 8000 euros anuais. Isto significa que as propinas actuais representam menos de 10% do custo real de um aluno ao Estado, pelo que os restantes 90% têm que ser pagos por alguém. Na sua maioria, trata-se da ‘generosidade involuntária’ dos contribuintes, muitos deles sem cursos superiores.

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À superfície, o modelo português parece ser aceitável, pois faz sentido que os custos com a educação sejam vistos como um investimento de e para o País, o verdadeiro ‘cliente’ e maior beneficiário do ensino superior. Porém, é então necessário que, não obstante algum risco que deve ser assumido pelo Estado (em bom Português significa ‘que se chegue à frente’ no início), se preconize que haja um retorno económico (nas suas múltiplas formas) no futuro. Este capital de retorno muitas vezes perde-se, por exemplo, quando os graduados não são absorvidos pelo mercado de trabalho nacional e, por isso mesmo, não devolvem ao país, por via do seu enriquecimento académico, o investimento que neles foi feito por todos nós.

O choque entre as propinas praticadas no curso de Medicina da Católica e as praticadas na generalidade do sector público não passa despercebido quando exacerba o fosso financeiro entre aqueles que se queixam por pagar 697 euros anuais para estudar, e aqueles para os quais pagar 23 vezes mais não parece ser um obstáculo inultrapassável. Não seria humano não compreender, nem simpatizar com tão nobre e antiga causa de patrocinar ensino de qualidade acessível para todos, quando é sabido que há famílias e estudantes que passam por grandes dificuldades e fazem enormes sacrifícios na busca por uma vida melhor. Mas, infelizmente, as barreiras são muita vezes tais que nos devemos questionar até que ponto o nosso sistema respeita, ou pelo menos se aproxima, do que vem consagrado no artigo 74.º da Constituição Portuguesa: “todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar.” A verdade é que, como noticia o Público, os estudantes mais pobres enfrentam mais dificuldades no acesso aos cursos que garantem mais emprego e remuneração (o que nos leva também a reflectir sobre o modelo de acesso ao Ensino Superior em Portugal, tal como discuti anteriormente aqui e aqui).

Um dos dilemas com que muitos dos estudantes se deparam é que lhes é pedido que paguem antes, para estudar depois. E se fosse ao contrário? E se fosse dada aos estudantes a oportunidade de estudar antes, e pagar depois, devolvendo mais tarde, quando (e se) as condições de vida finalmente o permitam, e sem que disso advenha um grande esforço financeiro no futuro, nem para eles individualmente, nem para o País como um todo?

Muitos dirão que já existem as linhas de crédito para estudantes do ensino superior (os chamados empréstimos com garantia mútua) que oferecem melhores condições junto do sistema financeiro para adquirir um empréstimo. Lançadas em 2007, estas linhas de crédito foram logo em 2011 apelidadas de “um jogo perigoso”, já que um recém licenciado desempregado se pode rapidamente transformar num devedor incumpridor.

No Reino Unido, essencialmente, funciona do seguinte modo: as propinas para um aluno britânico num bacharelato/mestrado integrado (estes últimos ainda existem no Reino Unido) são, regra geral, o máximo permitido de 9250 libras esterlinas anuais. Vamos ignorar por um momento os privilegiados que podem pagar as propinas à cabeça e aqueles que, por via do mérito ou acções de inclusão sociais, conseguem aceder a bolsas. Neste caso, o aluno pode candidatar-se a um financiamento que é regulado pelo governo britânico (Student Finance). Este pode não só ser usado para pagar as propinas mas também para cobrir despesas com o custo de vida (tão ou mais importantes!). No entanto – e aqui é que está o aspecto interessante neste esquema – o estudante só começará a pagar o empréstimo de volta se e quando (repito: se e quando) auferir um salário bruto superior a um determinado montante, o que neste momento está fixado em 2274 libras por mês a 12 meses (equivalente em Portugal a cerca de 2300 euros por mês a 14 meses, embora a equivalência não seja directa por não estarmos a contabilizar as diferenças nos custos de vida entre os dois países). A partir deste momento, começa a devolver-se o empréstimo (que inclui juros, claro que sim) a uma cadência de 9% da diferença para o salário base de 2274 libras. Por exemplo, vamos supor que alguém aufere um rendimento bruto mensal fixo de 3000 libras. Nesse caso, pagará mensalmente 65.34 libras de financiamento que são 9% da diferença bruta de 726 libras (3000-2274). Ao fim de 30 anos o empréstimo vence, mesmo que não tenha sido pago na totalidade e não há lugar a mais pagamentos.

O problema que se coloca em Inglaterra, e com o qual abri este artigo referindo-me a um artigo publicado no The Guardian em que se conclui que baixar o valor das propinas actuais não é necessariamente uma boa notícia para os estudantes, é que este modelo pode representar, paradoxalmente, mais custos (ou aumento de dívida) para o Estado, isto quando os pagamentos não são feitos. A verdade é que há alguns que nunca chegam a pagar propinas, e muitos há que nunca as pagam na totalidade quando estas vencem ao fim dos 30 anos.

O sistema de propinas actual no Reino Unido foi introduzido em 1998 por Tony Blair (primeiro-ministro trabalhista). Tem sido alvo de debate e discórdia, mas é uma oportunidade para países como Portugal reflectirem com vista a introduzirem reformas (ou não) com tudo aquilo que, entretanto, se aprendeu. A verdade é que 627 euros de propinas podem ser um custo imediato oneroso para muitos estudantes (já para não falar no custo de vida, alojamento, etc.), mas que o facto de esse valor estar muito aquém do custo real de um aluno por ano se traduz num encargo também ele muito elevado (e, porventura, injusto) para os contribuintes. Por outro lado, aliado a um regime de prescrições pouco rigoroso que ainda vigora e que nos remete para o início do texto, os estudantes são pouco responsabilizados quando a falta de aproveitamento é sistemática e ocupam uma vaga que poderia ser destinada a outros. Designado por ‘gift year’ (UCL), o modelo britânico de financiamento garante apenas mais um ano de propinas para aqueles que disso necessitem (trocando por ‘miúdos’, podem ‘chumbar’ um ano sem correr o risco de perder o financiamento).

O modelo inglês, se bem adaptado para responder aos desafios entretanto identificados e à realidade portuguesa, poderá representar a transferência deste encargo inicial (pelo menos durante o termo em que decorrem os estudos) para mais tarde quando (e se) o rendimento auferido for superior a um determinado mínimo. Só assim conseguiremos um ensino gratuito para quem disso mais precisa, sem os riscos das linhas de crédito de garantia mútua, e em que aqueles que atingirão maiores rendimentos poderão efectivamente devolver à sociedade o generoso investimento que neles foi feito. Para aqueles que nunca consigam auferir rendimentos suficientes para pagar o empréstimo, o custo seria de qualquer maneira absorvido pelo orçamento de estado, pelo que um modelo bem dimensionado deverá estar acautelado para estas circunstâncias.

Um país ambicioso quererá ver os seus formados vingar no mercado de trabalho. Em contrapartida, havendo receita esta poderá ser utilizada para contrabalançar a despesa ou para investir em melhores condições para os futuros estudantes. A verdade é que as instituições de ensino superior são subfinanciadas pelo Estado, vendo-se na obrigação de obter receitas próprias para colmatar as dificuldades orçamentais anuais, o que nem todas conseguem. Como consequência, as instalações deterioram-se, os equipamentos avariam e não são reparados ou substituídos e não abrem concursos para preencher vagas de professores ou promover de forma justa o mérito alcançado.

Ao mesmo tempo, é importante que haja confiança política para promover oportunidades para que os graduados sejam recompensados no futuro (preferencialmente por via do seu trabalho em Portugal), e que com isso vão ser capazes de saldar o empréstimo que contraíram aquando dos seus estudos, fechando (ou pelo menos consolidando) o ciclo económico do ensino superior.

É evidente que muitas questões se poderão levantar e que uma abordagem integrada a uma eventual reforma no ensino superior público em Portugal – para que seja mais eficiente e mais inclusivo – deverá estar na base de propostas neste sentido, começando por maior autonomia financeira, maior autonomia nos processos de selecção de candidatos, e por uma revisão dos regimes de prescrições acompanhada de medidas efectivas de combate ao insucesso escolar. O que é importante é começar por algum lado. E não é mudando umas centenas de euros por ano, seja para cima ou para baixo, que se vai a algum lado.

Nota sobre a estimativa do custo real ao estado de um aluno no ensino superior público em Portugal: é legitimo acreditar que o Estado (isto é, todos nós) invista entre pelo menos 7000 a 8000 euros por ano e por aluno no Ensino Superior Público, se tomarmos em consideração que este valor se fixava em 6624 euros há 10 anos atrás, de acordo com o estudo “Custo dos Estudantes no Ensino Superior” da Universidade de Lisboa (Público), que até ao final de 2021 se estime que o Estado tenha gasto 2577,8 milhões de euros, de acordo com a Fenprof (Observador), e que se inscreveram 323 754 alunos no ensino superior público em 2020 de acordo com a Pordata.