No passado dia 4 de Outubro apresentei um artigo no Observador onde reflectia sobre a ponderação das notas de candidatura ao Ensino Superior público em Portugal. Defendi que o modelo promove o inflaccionamento de notas, em grande parte devido ao peso excessivo das notas do liceu (discricionárias), o que cria assimetrias num processo que se quer igualitário, tal como tão bem argumentado num artigo no Público. Propus também que os exames sejam concebidos de forma a que a escala de avaliação seja logarítmica (afinal, a percepção dos números que é feita pelos nossos cérebros é logarítmica e não linear, como descrito na Science) para que o mesmo exame permita a todos – tanto aos que tenham adquirido o mínimo das competências, como aos que têm capacidade de pensamento crítico e integração de conhecimentos – terem palco para o demonstrarem. Finalmente, condenei a facilidade de acesso ao topo da escala de classificação, pois vai possibilitar que o erro cometido nas avaliações (aceitável numa visão metrológica) seja dominante. Quando a discussão se faz por décimas, candidatar ao Superior é como atravessar o Rubicão: alea iacta est!

Uma importante variável que omiti, e que tem vindo a ser referida noutros artigos, foi a da utilização de métodos alternativos de selecção de candidatos ao Ensino Superior. Destaco alguns artigos, dois no Observador (aqui e aqui), e um no The Guardian sobre o que se passa no Reino Unido. É precisamente com o Reino Unido, onde o método de candidatura é radicalmente diferente do português, que comparo, não por este ser todo em si gracioso, mas por ser na integração de ambos que talvez se encontrem algumas virtudes: o mote é “aprender com os outros”.

No Reino Unido, uma diferença que é fundamental (seja para o bem ou para o mal) é que há autonomia das instituições. Em Portugal, sendo o processo de selecção centralizado, as instituições não têm voz na escolha dos seus alunos. Até porque é muito mais cómodo. É importante notar, que quando me refiro a autonomia esta não se extingue na captação de alunos, passando também por ser financeira: mais de 50% do financiamento das instituições britânicas provêm de propinas. Mas, se por um lado, estas são bem mais elevadas (mais de 10 mil euros por ano por aluno, num volume de negócios que atinge vários milhares de milhões de euros), por outro lado, oferece mecanismos de financiamento que tornam o Ensino Superior – paradoxalmente – relativamente universal (talvez fique para um futuro artigo). Sendo os princípios subjacentes pronunciadamente liberais, à autonomia está associada a independência necessária para que se tenha de procurar vantagem competitiva pela diferenciação (o contra-argumento é que a qualidade dos cursos pode ser mais heterogénea do que em Portugal, onde os conhecimentos de base são sólidos e consistentes entre Universidades e Politécnicos), o que implica um enorme esforço adicional de promoção.

No entanto, mesmo havendo autonomia, todas as candidaturas ao Ensino Superior no Reino Unido são centralmente administradas pelo UCAS (University and Colleges Admissions Service). O UCAS determina uma classificação (tariff points) com base nos A-levels (ou outras qualificações equivalentes). Cada A-level é concluído com exames nacionais, iguais para todos, numa determinada disciplina no final do secundário (ou seja, traduzindo para o nosso sistema, combinam exames realizados nos finais dos nossos 11.º e 12.º anos a cada disciplina nuclear). Se até aqui os princípios fundamentais são relativamente semelhantes, há diferenças substanciais. Em primeiro lugar, as notas discricionariamente atribuídas pelas escolas e colégios não são tidas em conta para os A-levels e pontos UCAS. Em segundo lugar, são as instituições de Ensino Superior quem estipula os resultados mínimos de candidatura (e a que disciplinas) que os candidatos devem apresentar nos A-levels. Também cabe às instituições definirem condições especiais de acesso, como seja para aqueles que tenham necessidades, sejam de aprendizagem, sociais ou económicas (não, não me refiro a bolsas).

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A escala dos A-levels é bastante grosseira quando comparada com os 0 a 200 valores (mais uma casa decimal) que estamos habituados a ver nas listas de colocados em Portugal. Os A-levels são graduados em seis níveis, de E a A* (cada banda cobre cerca de 2 valores numa escala de 0 a 20, com excepção de A, que vai de 16 a 20 valores, em que se inclui A*, que vai de 18 a 20 valores em condições especiais). A correspondência entre níveis e pontos UCAS é relativamente complexa e pouco óbvia (digamos, que nisto dos números, é um sistema muito inglês), mas o que importa reter é que são as universidades que definem os mínimos à partida e isso não resulta do aparente desempenho relativo (melhor ou pior) dos alunos num determinado ano. Ou seja, os candidatos já saberão a priori quanto precisam de ter para serem admitidos ao processo de selecção interna. Esta é a terceira grande diferença: os exames nacionais (i.e., os A-levels) não são exclusivos para garantir a entrada. Garantem, sim, o acesso ao processo interno de selecção de candidatos das próprias instituições e é aqui que reside a autonomia das instituições na escolha dos seus alunos.  Tal acontece com, por exemplo, Medicina em Oxford (tida nalguns rankings como a melhor universidade do planeta), onde é exigida uma combinação de A*AA nos A-levels, sendo que um deles tem que ser em Química e os outros dois em Biologia, Física, Matemática ou Matemática Avançada. A*AA corresponde a 152 pontos na escala UCAS. No entanto, isto só por si pode não ser suficiente ou determinante.

Por exemplo, para Product Design na Universidade de Bournemouth, que é um curso de índole muito prática e criativa, pedem-se entre 104 a 120 pontos, que devem incluir dois A-levels em qualquer disciplina (excluindo General Studies, i.e., todas e quaisquer outras disciplinas contam). Parece muito menos do que para Oxford, não é? Mas se um aluno tiver completado os dois A-levels exigidos com AA (que são excelentes resultados, parecidos com o nível de Oxford), em termos de pontos UCAS só tem 96 pontos, o que não chega. Para ter 104 pontos precisa de A*A, o que é equivalente ao nível exigido em Oxford para Medicina, ou não?

Segundo a Oxford Royale Academy ou o site UniCompare, os alunos podem complementar a sua candidatura com mais A-levels, assim acumulando mais pontos UCAS, mas também com actividades extracurriculares (desde que sejam oficialmente reconhecidas), onde se incluem: voluntariado, projectos de índole prática, Inglês, equitação, ou hobbies como sejam música, teatro ou dança. Ou seja, se para entrar em Product Design em Bournemouth com dois A-levels AA não é suficiente, com três A-levels basta ter BCC para se atingir os 104 pontos UCAS mínimos. Ou então poderá complementar dois AA (96 pontos) com uma qualificação em voluntariado AoPE (Award of Personal Effectiveness) atribuído pela ASDAN (Award Scheme Development and Accreditation Network) que vale 8 pontos UCAS. Parece confuso, mas tem o seu mérito. Pense-se na seguinte pergunta (retórica e provocatória, com certeza): quem é que “vale” mais, um aluno que fez apenas um exame e nele atingiu 18 valores, ou um aluno que se propôs a dois exames e teve 17 em ambos?

Uma vez alcançados os mínimos exigidos (numa espécie de triagem), as universidades conduzem a sua própria selecção, com base noutras provas, como sejam:

  • Exames escritos internos;
  • Entrevistas;
  • Apresentação de portefólios;
  • Carta de motivação escrita pelo candidato;
  • Cartas de recomendação escritas por terceiros;
  • Demonstração de outras competências, incluindo: ter dado explicações, domínio de literatura na área a que se estão a candidatar, prémios, línguas estrangeiras, etc.

Uma outra peculiaridade deste modelo é que um aluno pode, ainda antes do Natal, já ter entrada garantida para o ano lectivo seguinte (não é preciso esperar até ao fim do ano). Por exemplo, Oxford deixa de aceitar candidaturas a 15 de Outubro (!). Na Universidade de Bournemouth, o primeiro Open Day onde se entrevistam candidatos é já no dia 25 de Novembro de 2020. Para se entrar em três das quatro licenciaturas do Departamento de Design and Engineering, todos os alunos têm que passar por uma entrevista em que lhes é pedido que apresentem um portefólio (extracurricular ou não) de concepção e desenvolvimento de produto que inclua desenho à mão livre, modelação geométrica por computador, desenho técnico e/ou protótipos físicos funcionais. Na entrevista são avaliados, entre outras coisas, o entusiasmo, interesse pelo curso, e fluência do candidato na discussão do assunto. O processo de admissão interno, onde se inclui a entrevista, pode resultar em um de três cenários: rejeição, proposta para outro curso (cross-sell), ou oferta.

Quando são feitas ofertas, estas são normalmente condicionais. Isto porque o candidato ainda não tem os resultados dos seus A-levels (cujos exames só acontecem no final do ano lectivo) quando o processo de selecção interna começa. O que há, é uma previsão com base no histórico do aluno (nomeadamente dos AS-levels, que são mais ou menos o equivalente a exames do 11.º ano). Portanto, o aluno tem o seu lugar garantido desde que atinja – mais tarde e a seu tempo – os mínimos dos pontos UCAS exigidos para esse curso.

As ofertas incondicionais são um pouco bizarras. Na minha universidade tem sido prática considerar, que havendo alunos que se apresentem com uma previsão de 140 pontos UCAS, e sendo demonstrado na entrevista que são “quem procuramos”, fazemos ofertas incondicionais. Nestes casos, os candidatos, confirmando que aceitam a oferta desde logo, já não precisam sequer de atingir os pontos UCAS mínimos – só precisam de passar – pois já garantiram o seu lugar com base no bom desempenho em anos anteriores. E esta, hem?

Toda esta diversidade de critérios, motivada pela autonomia, origina competição entre instituições pela captação dos melhores alunos. Por outras palavras, a selecção é bidireccional, porquanto há uma disputa de alunos por universidades, e vice-versa. Isto obriga as universidades a terem que se posicionar nos rankings, a fazerem o tudo por tudo por terem boas avaliações no National Student Survey (NSS) e a oferecerem a promessa da melhor experiência possível aos futuros alunos. Para isso têm de inovar, não só na produção científica e colaboração com a indústria, mas também nas pedagogias de aprendizagem, no conjunto da experiência universitária em geral e no processo de captação de alunos.

No entanto, e como em tudo, há também o reverso da medalha…

Ao terem autonomia nos métodos de selecção, não é garantida a imparcialidade na selecção de candidatos. Por exemplo, uma entrevista pode introduzir juízos de valor subconscientes motivados pelos nossos próprios preconceitos que jamais nos atreveríamos aceitar (já agora, recomendo os livros “Blink” e “Subliminar” de Malcolm Gladwell e Leonard Mlodinow, respectivamente). Isto é designado na literatura anglo-saxónica por Unconscious Bias. Em Portugal já se discute os prós e contras da introdução de entrevistas no sistema de recrutamento, mas será que isso não vem tarde, quando em terras de Sua Majestade a tendência parece ser no sentido inverso? Actualmente, não só já se discute a remoção de entrevistas dos processos de recrutamento para emprego académico, como também de aspectos que tradicionalmente aparecem nos Curriculum Vitæ, como seja a menção da universidade em que se tirou o curso (vide Times Higher Education). O objectivo é descontextualizar as candidaturas de elitismo e preconceitos (i.e., bias), sobretudo raciais e de género. Por exemplo, Oxford ou Cambridge são muitas vezes acusadas de elitismo. Pese embora o esforço que têm feito para serem mais inclusivas, alunos de escolas públicas ainda têm, do ponto de vista estatístico, menos hipóteses de ter as suas candidaturas aceites do que aqueles que provém de colégios privados. Há quem atribua a isso elitismo, o que é discutível, com certeza. Mas devo dizer a este respeito que, aqui há umas poucas semanas (quando a Covid-19 ainda o permitia) tive cá a jantar em casa um amigo inglês que se licenciou na Universidade de Manchester e fez o mestrado em Cambridge (ambas do Russell Group, isto é, de topo!). Ele contava-nos, que se um dos membros do painel que entrevista nestas universidades reconhecer a gravata do colégio com que o candidato se apresenta, isso pode ser o que basta para que consiga o lugar. Como ele dizia: “Nessas universidades são muito collegiate” (em Portugal chamamos cunha…).

Todo este raciocínio explode numa contradição para que sejamos devolvidos à ausência de uma resposta. Afinal, o que mudar – e será que é preciso mudar assim tanto para melhorar o modo como aferimos os candidatos ao Ensino Superior público em Portugal? Se isso aumentar o sentido de justiça e se tiver como efeito colateral a promoção do desenvolvimento de outras competências, desde que garantida a “igualdade de tratamento, objectividade e transparência” (princípios fundamentais tão bem defendidos no Observador), estou convencido que sim. Ao Ministério, pelos braços da DGES e A3ES, competirá sempre moderar, regular e arbitrar. Assim sendo, deixo para reflexão as seguintes questões que me parecem, a mim, fundamentais:

  • As instituições públicas devem ou não ter autonomia na selecção dos seus candidatos, complementando aos resultados dos exames nacionais do secundário (para triagem) os métodos internos de selecção que considerem adequados, desde que sempre garantindo a anonimidade dos mesmos, transparência e rigor nos critérios (lembre-se que já há autonomia para a selecção de maiores de 23 anos)?
  • Devemos ou não continuar a promover exames escritos finais, porquanto sejam nacionais e anónimos, para avaliar o desempenho no secundário de forma transparente, e devem estes ser feitos logo no 11.º ano para que haja alguma redundância, para que a consistência seja valorizada, e para que cada exame não seja, em si só, demasiadamente determinante?
  • Devemos ou não considerar factores de ponderação para hobbies e actividades extracurriculares demonstráveis, como sejam voluntariado, música, pintura, leitura ou desporto, desde que devidamente reconhecidas, para que possamos contabilizar outras valências e valorizar o seu desenvolvimento, como sejam a criatividade e os chamados soft skills?
  • Devemos ou não contemplar a possibilidade de entrevistar candidatos para avaliar outras competências, sobretudo no caso de cursos mais artísticos e criativos (embora o grande desafio esteja em garantir mecanismos que eliminem o favoritismo e o preconceito)?
  • Devemos ou não retirar da ponderação da nota de candidatura ao Ensino Superior a avaliação discricionária das diferentes escolas e colégios, de modo a eliminar que estabelecimentos de ensino – tanto públicos como privados, e alguns bem conhecidos entre nós – não estejam forçados a uma estratégia que conduz ao inflacionamento de notas?

Para concluir, queria sublinhar que o meu objectivo com este artigo não é o de propor uma solução estanque e definitiva, nem de apresentar a verdade no sentido amplo filosófico. O meu interesse está em recolocar o assunto na discussão pública, para que, com isso, não só tornemos o processo de candidatura ao Ensino Superior público mais justo, igualitário e transparente, mas para que este continue investido da exigência que merece, e para que, com ele e com a introdução de outros mecanismos de avaliação, se incentive os jovens Portugueses a estudarem e a desenvolverem outras competências, tão ou mais importantes que as tradicionais académicas. Só assim podemos ajudar as futuras gerações a estarem mais bem preparadas para um mundo cada vez mais global, digital e automatizado, onde a solução para os desafios vai muito para além dos conhecimentos de base. O Reino Unido parece já ter percebido isso.