Agora que chegou ao fim o incêndio na Serra de Monchique, e tendo em conta muito do que se tem dito e escrito sobre o assunto, é boa altura para avaliar a questão do papel que os diferentes tipos de vegetação e de uso da terra poderão ter tido neste evento, bem como a sua possível contribuição para a frequência e magnitude com que o problema afecta a região e o país. O incêndio de 3 de Agosto queimou quase metade da área do concelho de Monchique, atingiu em bastante menor grau o concelho de Silves e também uma pequena proporção do de Portimão. As opiniões sobre questões como a importância da grande área de eucaliptal existente em Monchique, as eventuais vantagens do uso de espécies folhosas autóctones, ou a importância da perda das áreas agrícolas, propagaram-se ainda mais rapidamente do que o fogo e, em muitos casos, foram desprovidas de qualquer preocupação de análise rigorosa e ancoragem na realidade.
As hipóteses aparentemente mais populares na opinião pública são as de que o fogo revela uma especial apetência por eucaliptais, enquanto que tenderá a poupar as áreas de folhosas autóctones. Vejamos o que dizem os números no incêndio no Barlavento Algarvio
Uma maneira objectiva de analisar a questão, é avaliar as “preferências” do fogo face aos vários tipos de vegetação disponíveis na zona afectada, recorrendo a mapas de ocupação do solo e a mapas das áreas afectadas pelo fogo Metaforicamente, pensemos no fogo como um herbívoro, que expressa as suas “escolhas alimentares” através dos tipos de vegetação que, na sua progressão pelo terreno, mais “prefere” ou “evita” consumir. Os tipos de vegetação mais preocupantes serão aqueles que o fogo consome numa proporção superior àquela que está disponível no local, enquanto que os tipos de vegetação menos vulneráveis ao fogo são os que ardem em proporção inferior à existente na zona. As hipóteses aparentemente mais populares na opinião pública são as de que o fogo revela uma especial apetência por eucaliptais, enquanto que tenderá a poupar as áreas de folhosas autóctones. Vejamos o que dizem os números analisados desta forma, para o incêndio em curso no Barlavento Algarvio, até às 11 horas da manhã de 8 de Agosto, quando o satélite Sentinel-2 obteve uma imagem livre de nuvens e de fumo, que nos permitiu cartografar detalhadamente o perímetro da área queimada.
No concelho de Monchique, onde tinham ardido até àquela data 16.183 hectares, a percentagem da área do concelho ocupada por eucaliptal era de 44% (17.529 ha) e a percentagem de eucaliptal na área queimada era de 45%. A percentagem de matas de sobreiro no concelho era de 18% (7.001 hectares), enquanto que a percentagem deste tipo de vegetação na área queimada no concelho era de 17%. A outra grande classe de ocupação do solo em Monchique são os matos (10.522 hectares), que ocupavam 27% da área do concelho e apareciam representados precisamente nessa percentagem no interior da área queimada.
A propagação deste fogo foi essencialmente indiferente ao tipo de vegetação que encontrou pela frente.
Portanto, o fogo afectou os grandes tipos de ocupação do solo quase exactamente na proporção em que estavam presentes no concelho de Monchique, não tendo “preferido” (nem “evitado”) nenhum deles. Todos revelaram igual propensão para arder. Verificou-se o mesmo para tipos de ocupação do solo com menor extensão, como as áreas agrícolas e as de outros tipos de floresta, ou seja, a propagação do fogo foi essencialmente indiferente ao tipo de vegetação que encontrou pela frente.
Este comportamento é tanto mais comum quanto maiores são os incêndios, porque os grandes incêndios tendem a desenvolver-se sob condições meteorológicas severas, que lhes conferem grande intensidade e, em consequência disso, a capacidade de queimar mesmo a vegetação que está verde e com teores de humidade altos. O padrão de reduzidas diferenças na propensão para arder de diferentes espécies arbóreas, matagais e mesmo de áreas agrícolas não foi uma peculiaridade do grande incêndio de Monchique.
Estudámos 5712 fogos ocorridos entre 1990 e 1994. Concluímos que as áreas agrícolas são as que revelam menor propensão a arder, seguidas pelos montados de sobreiro e azinheira, e depois pelos eucaliptais, que ardiam menos do que seria de esperar. O que mais ardia era o pinhal bravo e, sobretudo, os matagais.
Há alguns anos, no Centro de Estudos Florestais do Instituto Superior de Agronomia a minha então doutoranda Ana Barros e eu analisámos esta questão das preferências do fogo pelos diferentes tipos de vegetação e como essas preferências variavam em função do tamanho do fogo. Estudámos 5712 fogos ocorridos entre 1990 e 1994, com tamanhos que variavam de 5 ha até áreas próximas da deste fogo de Monchique e que queimaram uma área total de 442.924 hectares. Concluímos, previsivelmente, que as áreas agrícolas são as que revelam menor propensão a arder, seguidas pelos montados de sobreiro e azinheira, e depois pelos eucaliptais, que ardiam menos do que seria de esperar, atendendo à extensão que ocupam em Portugal. Os tipos de vegetação em que o fogo incidia mais fortemente do que a sua abundância relativa faria prever, eram o pinhal bravo e, sobretudo, os matagais. Este estudo demonstrou também que as diferenças de apetência do fogo pelos diferentes tipos de vegetação se atenuavam fortemente quando o tamanho dos incêndios se aproximava dos 10.000 hectares.
Um outro estudo sobre preferências do fogo mostrou surpreendentemente (ou talvez não), que o fogo revelou o mesmo grau de apetência por eucaliptais puros e por florestas puras de árvores folhosas.
Francisco Moreira, do CEAB/InBio (Instituto Superior de Agronomia), liderou outro estudo sobre preferências do fogo, em que foram analisados mais tipos de vegetação e diferentes regiões de Portugal consideradas separadamente. No cômputo global do país, concluíram que os matagais são, de longe, o tipo de vegetação mais propenso a arder, seguido pelas florestas de coníferas (pinhais) e pelas florestas mistas de folhosas com pinheiros, ou folhosas com eucaliptos. Surpreendentemente (ou talvez não), o fogo revelou o mesmo grau de apetência por eucaliptais puros e por florestas puras de árvores folhosas.
Paulo Fernandes, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e seus colaboradores analisaram as circunstâncias que mais contribuem para a ocorrência de grandes incêndios, para além da severidade das condições meteorológicas. Estudaram 609 grandes fogos ocorridos entre 1998 e 2008, com tamanhos variáveis entre os 100 hectares e mais de 20.000 hectares, e concluíram que o tipo de floresta é praticamente irrelevante e que o que propicia a ocorrência de grandes incêndios é a extensão das áreas contínuas de matos e floresta. Num outro estudo, Paulo Fernandes avaliou o perigo de incêndio em 19 tipos de floresta, tendo em conta a espécie de árvores dominante, a densidade e altura da floresta, e a altura e quantidade de mato existente debaixo das copas das árvores. Os resultados revelaram que o perigo de incêndio variava pouco em função da espécie arbórea dominante e dependia sobretudo da intensidade de gestão. Os resultados produzidos por estes trabalhos, em que foram analisados milhares de fogos e centenas de milhar de hectares de áreas queimadas ao longo de períodos de vários anos, permitem retirar conclusões úteis para a compreensão e melhor gestão do problema dos incêndios no Barlavento Algarvio e no resto de Portugal. Algumas das mais importantes são as seguintes:
- Os tipos de vegetação preferidos pelo fogo são os matagais e o pinhal bravo. O eucaliptal arde menos do que era expectável em função da área que ocupa e, em média para todo o país, tem níveis de propensão para arder próximos dos de florestas de folhosas autóctones de folha perene e de folha caduca (sobreiros, azinheiras, carvalho-alvarinho, carvalho-negral e outras). Portanto, a escolha da espécie tem um potencial relativamente limitado para reduzir substancialmente o problema dos incêndios em Portugal
O eucaliptal arde menos do que era expectável em função da área que ocupa e, em média para todo o país, tem níveis de propensão para arder próximos dos de florestas de folhosas autóctones
- Bastante mais do que a espécie arbórea que constitui a floresta, o tipo e intensidade das práticas de silvicultura fazem a diferença quanto ao perigo de incêndio. Florestas com baixas cargas e altura de mato, reduzida acumulação de folhada caída no chão e árvores com bases da copa desrramadas e bem acima do topo da vegetação rasteira são muito menos susceptíveis ao fogo. A grande propensão do pinhal bravo para arder resulta, em boa medida, da baixa intensidade de gestão a que a maior parte da área desta floresta está sujeita. Em contraponto, a maior rentabilidade económica do eucaliptal justifica uma silvicultura mais cuidade, que reduz a susceptibilidade ao fogo.
- As áreas agrícolas são o grande tipo de uso da terra menos susceptível ao fogo, mas sob as condições meteorológicas severas que dão origem aos grandes incêndios, esbatem-se as diferenças de susceptibilidade ao fogo e mesmo áreas agrícolas acabam por ser queimadas. Portanto, com meteorologia benigna ou moderada, as áreas agrícolas envolventes das povoações ajudam a conter a propagação do fogo, mas sob condições mais extremas a sua eficácia reduz-se e o combate torna-se indispensável, podendo mesmo ser necessária a evacuação dos habitantes
O factor que mais propicia a ocorrência de mega-incêndios é a existência de grandes extensões ininterruptas de florestas e matagais, muito mais do que a natureza da espécie que constitui a floresta.
- O factor que mais propicia a ocorrência de mega-incêndios é a existência de grandes extensões ininterruptas de florestas e matagais, muito mais do que a natureza da espécie que constitui a floresta. É por isso que é importante construir e manter uma rede de faixas largas, tratadas periodicamente para manter cargas muito baixas de vegetação combustível e em localizações estrategicamente selecionadas no terreno. Estas redes devem, sempre que possível, incorporar áreas agrícolas e outras desprovidas de vegetação, como zonas rochosas e albufeiras de barragens. A função destas faixas de gestão de combustível não é, por si só, deter a propagação do fogo, é sim propiciar locais onde o combate seja simultaneamente mais seguro e mais eficaz. Isto exige um grau de integração entre acções de prevenção e de combate bastante superior ao que actualmente caracteriza o sistema nacional de defesa da floresta contra incêndios. O facto de uma das prioridades estratégicas da futura Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais ser a aproximação entre a prevenção e o combate é motivo de esperança acrescida em que se venha a concretizar o potencial deste tipo de intervenção de larga escala territorial.
Tenho a noção de que muito do que aqui ficou dito contraria hipóteses populares entre boa parte da opinião pública, mas que são contraditadas por análises objectivas dos dados relevantes. Por muito apelativas que algumas dessas hipóteses possam ser, não resistem ao confronto com o que T.H. Huxley, o biólogo evolucionista contemporâneo de Darwin, chamava “ugly little facts”.
Centro de Estudos Florestais, Instituto Superior de Agronomia, Universidade de Lisboa