A recente audição parlamentar da Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais (AGIF), aquando da apresentação do relatório de atividades de 2022 suscitou polémica, nomeadamente quando o seu Presidente afirmou que o financiamento dos bombeiros depende da área queimada. Essa afirmação foi enfaticamente negada pela Liga dos Bombeiros Portugueses e por algumas autarquias, que pediram a demissão do Presidente da AGIF, Tiago Oliveira. Entretanto, os ânimos foram-se moderando e, em declarações recentes ao Expresso, o Presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP) reconheceu que tanto o número das ignições como a área queimada contribuem para o cálculo da fração do financiamento global atribuído pela Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANEPC) que cabe a cada corpo de bombeiros.

A polémica surpreendeu-me porque a Lei 95/2014, que define as regras do financiamento em causa, determina que a verba a atribuir a cada corpo de bombeiros dependa da suscetibilidade do seu território de intervenção a catorze riscos, cujos valores variam de ano para ano: incêndios florestais, incêndios urbanos, acidentes rodoviários, acidentes com materiais industriais perigosos, cheias e inundações, acidentes no transporte rodoviário de materiais perigosos, sismos, secas, neve, acidentes ferroviários, tsunamis, acidentes em edifícios com elevada concentração de pessoas, deslizamentos de terras e queda de arribas.

Com certeza que, confrontado com este facto, nenhum bombeiro se sentirá alvo de qualquer suspeição quanto a treze dos catorze riscos. É inconcebível que qualquer bombeiro, ou alguma das instituições que os representam, se considere suspeito, por ação ou omissão, de contribuir para aumentar o nível de suscetibilidade do território de intervenção do seu corpo de bombeiros para, por essa via, receber financiamento acrescido. Não é preciso assegurar aos bombeiros que ninguém suspeita de que eles tenham interesse em que ocorram desastres de automóvel, fogos em casas, acidentes em fábricas, ou deslizes de terras, para já não falar no absurdo que seria desconfiar que possam promover sismos ou tsunamis.

A exceção, evidentemente, são os incêndios florestais. Quando o Presidente da AGIF afirmou que o financiamento dos bombeiros dependia da área queimada e questionou os deputados sobre se isso não constituiria um incentivo perverso, os bombeiros sentiram-se alvo de uma avaliação de natureza moral e de um julgamento de intenções, que faria deles suspeitos de quererem beneficiar com a aumento da área queimada. Conhecendo bem o percurso profissional do Presidente da AGIF, nomeadamente na vertente académica, interpreto as suas afirmações de forma distinta.

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Comecemos por esclarecer o que é um incentivo perverso, que não tem nada a ver com juízos de natureza moral. Incentivo perverso é aquele que tem um resultado não pretendido, ou mesmo indesejável, contrário às intenções de quem o concebeu e aplicou. A expressão usa-se para referir situações em que se aplicaram estímulos incorretos a questões económicas e políticas, os quais tiveram consequências imprevistas e não intencionais (traduzido livremente de https://en.wikipedia.org/wiki/Perverse_incentive). Na questão dos incêndios florestais em Portugal, a perversidade do incentivo está em que aumentar o financiamento dos bombeiros em função da área queimada poderá capacitá-los para responder a um perigo cada vez maior, mas retira financiamento a tarefas destinadas a promover o objetivo preferível, que é reduzir a suscetibilidade do território ao perigo de incêndio florestal, ou seja, a prevenir a ocorrência de grandes incêndios.

Há muito que Tiago Oliveira se preocupa com a questão de como melhor distribuir, entre as tarefas da prevenção e as do combate, o orçamento disponível para gerir os incêndios. Há 10 anos foi co-autor de um estudo, com investigadores do MIT e da Universidade do Porto, que analisava a relação de interdependência entre a dimensão política e física no sistema de gestão do risco de incêndios. O objetivo do estudo era, precisamente, perceber como gerir os incêndios florestais de maneira a evitar consequências indesejadas, aquelas a que se chama a “armadilha do combate”, ou o “paradoxo do fogo”. Esta situação ocorre quando um sistema de gestão do fogo que investe muito fortemente no combate, incluindo meios aéreos, e menospreza a redução periódica dos matos e outra vegetação fina, obtém sucesso durante a fase inicial ao conseguir suprimir rapidamente os fogos nascentes. Porém, se a vegetação fina não é roçada, queimada de modo controlado, ou pastada, vai-se acumulando gradualmente até atingir cargas perigosas, que podem chegar às duas ou três dezenas de toneladas por hectare. Quando ocorre uma ignição nesta vegetação, sobretudo em dias quentes, secos e ventosos, o fogo rapidamente atinge níveis de intensidade superiores à nossa capacidade de os extinguir, mesmo com meios aéreos pesados. O sucesso inicial na supressão do fogo vai criando as condições para que, mais tarde, ocorram fogos incontroláveis. Os americanos dizem que estes modelos de gestão acabam por ser “vítimas do seu próprio sucesso”. É esta a perversidade do incentivo de que falava Tiago Oliveira na recente audição parlamentar.

Este problema preocupa investigadores e gestores do fogo nas cinco regiões da Terra que têm um clima de tipo mediterrânico, com verões quentes e secos e taxas relativamente elevadas de crescimento da vegetação: a bacia mediterrânica propriamente dita, a Califórnia, e partes do Chile, da África do Sul e da Austrália. Há pouco mais de três anos, um grupo de vinte e dois investigadores dessas regiões, entre os quais quatro portugueses, publicou um apelo à mudança de paradigma na gestão do fogo. Os autores do estudo alertaram para o problema da “armadilha do combate”, sobretudo em regiões onde as condições ambientais e socio-económicas se estão a agravar devido a processos como o abandono rural, a falta de gestão de florestas plantadas, a expansão das áreas de contacto entre zonas urbanas e vegetação perigosa, a expansão de espécies invasoras muito inflamáveis e o incipiente uso do fogo controlado para reduzir o risco de incêndio. Tudo isto é agravado pelo aumento de frequência de condições meteorológicas favoráveis a incêndios extremos, sob a influência das alterações climáticas.

Com a criação da AGIF, em 2018, começou a equilibrar-se a distribuição orçamental das verbas da administração central destinadas à prevenção e ao combate, à escala nacional. Antes, havia anos em que chegava a ser atribuída ao combate uma verba quatro vezes maior do que a alocada à prevenção, mas a repartição tem vindo a tornar-se bastante mais paritária. É importante que esses equilíbrios se construam e consolidem também aos níveis municipal e de cada corpo de bombeiros, da forma mais adequada às circunstâncias do território.

É neste contexto da procura duma adequada repartição de verbas entre prevenção e combate que, creio, deve entender-se a menção de Tiago Oliveira ao incentivo perverso que pode constituir o facto de os valores da área queimada e do número de ignições contribuírem para o cálculo do financiamento de cada corpo de bombeiros. A dimensão dessa contribuição varia pelo País fora, de acordo com as condições ambientais e o historial local de ocorrência de fogo. Em áreas predominantemente urbanas e agrícolas, a contribuição para o financiamento por esta via será insignificante ou nula. Por outro lado, devido à natureza da fórmula de distribuição de financiamento que consta do artigo 4º da Lei 94/2015, essa contribuição poderá ser bastante importante nos territórios com baixa densidade populacional e economicamente débeis, com elevada suscetibilidade aos incêndios florestais e onde haja pouca população, poucos bombeiros, reduzido número de ocorrências e baixa suscetibilidade a riscos decorrentes de atividades industriais e de concentrações urbanas importantes.

Uma futura revisão da legislação de financiamento das Associações Humanitárias de Bombeiros deverá permitir avaliar o impacto do incentivo perverso para o qual Tiago Oliveira alertou, bem como introduzir nessa legislação as alterações necessárias para que ela fique mais consentânea com a lógica do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais. Essa lógica assenta na boa articulação e forte complementaridade entre a prevenção do risco de fogo nos territórios rurais e o combate para proteção das vidas humanas e dos valores patrimoniais que todos prezamos.