Assinalou-se ontem mais um Dia da Europa. A data, celebrada com mais ou menos entusiasmo, um pouco por todo lado (porventura menos nas ilhas britânicas…), corresponde ao dia 9 de maio de 1950 e à célebre Declaração Schuman. Estávamos, então, no rescaldo da segunda guerra mundial e nessa declaração propunha-se a refundação da Europa, como comunidade de paz, liberdade e solidariedade.
Ora, em mais um aniversário da Europa, como entender Portugal? Fomos europeus, fomos mundo, regressámos à Europa. É sobre o significado desse regresso que tratará esta crónica.
Vivemos num mundo em que a nova luta de classes parece ser entre nómadas e sedentários. Vivemos numa Europa cada vez mais dividida, dilacerada, entre o seu passado glorioso, mas fragmentário, e o seu futuro, provavelmente mediano, mas, para muitos europeus, assustadoramente globalizado.
Escrever sobre o regresso de Portugal à Europa é escrever, sobretudo, acerca da nossa identidade como povo e refletir acerca da dimensão cultural dessa mesma identidade (dimensão a que entre nós se dedicou, de forma sábia, Eduardo Lourenço, mas também Vasco Graça Moura na sua última obra).
Podemos começar por afirmar que Portugal, depois de séculos de expansão pelo mundo, regressou a casa. Esse movimento de regresso, ocorrido nos últimos quarenta anos, correspondeu, também, a uma enorme viragem europeia no quadro de um mundo globalizado. Ou seja, ao regressarem a casa, os portugueses qual Ulisses depois da campanha de Tróia, começaram por beneficiar do habitual acolhimento do lar, mas confrontam-se agora com o facto de esse mesmo lar, essa mesma Europa, ter iniciado uma crise de crescimento. Voltamos assim a viver a ansiedade de sempre: onde pertencemos, qual o nosso lugar, qual o nosso papel como povo e como nação?
Estamos perante um regresso à Europa, a esse Labirinto ou Casa Comum, como lhe chamou Eduardo Lourenço e donde geograficamente nunca saímos, mas de onde o nosso sentimento periférico muitas vezes nos afastou. Ao fim destes anos de regresso, podemos discutir as vantagens ou desvantagens dos subsídios; podemos destacar o papel da então C.E.E. para a consolidação a nossa jovem democracia pós 25 de Abril de 1974. Podemos discutir o impacto económico-financeiro do Tratado de Maastricht e da adesão à moeda única. Mas duma coisa temos a certeza, voltámos a ocupar o lugar que sempre foi nosso, mesmo que quando fazíamos do oceano o nosso mar interior.
O processo de adesão, concretizado em 1 de Janeiro de 1986, teve consequências irreversíveis no nosso presente, não devendo sequer ser escamoteadas as enormes alterações introduzidas no quotidiano e na melhoria das condições de vida dos portugueses. Importando neste momento e nesta fase de redefinição da própria construção europeia, compreender aquilo que está por detrás, a forma como se pode encarar a Europa para lá desse Labirinto da Saudade (para citar outra veza Eduardo Lourenço) em que nos temos vindo progressivamente a enredar como povo.
Essa tentativa de compreensão leva-nos, habitualmente, para o campo da análise económica, política, social ou da estratégia nas relações internacionais. Na verdade, é esse o campo em que costumamos questionar a intervenção dos políticos, a ação dos governos, o grau de envolvimento das empresas, dos agentes sociais, face ao novo contexto de globalização e mundo de soma zero, face à nova inserção do país no seio da crise do euro.
Contudo, interessa-me também o campo da cultura, da identidade, a sua dimensão de conhecimento, do espírito de que também se fazem os povos e pela qual tantos lutaram. Ou seja, perante a hegemonia do discurso económico-financeiro sobre o nosso dia-a-dia, tantas vezes acabamos por esquecer os grandes arautos da mudança, aqueles que tocam mais de perto o sentimento e o sonho. Acabamos por esquecer a carícia da palavra, a voz dos escritores, dos poetas, a voz dos artífices do pensamento. São eles que mais cedo pressentem os desvios, os saltos da história, as metamorfoses do nosso devir coletivo, da nossa identidade.
Para Jacques Le Goff por exemplo, a Europa é antiga e futura ao mesmo tempo. A Europa é antiga, vive da memória dos seus povos e ideias, mas é, sobretudo, a diversidade que a une. Ela é e foi sempre a fonte de algo novo. Querendo ser forte, mas rejeitando os impérios, a Europa, mesmo nos seus períodos de unidade política, nunca anulou a diversidade. Quer sob o Império Romano, quer sob a cristandade ou durante o cesarismo napoleónico, a especificidade da Europa assentou sempre numa dialética entre o esforço para a unidade e a manutenção da diversidade.
É esta Europa a que os portugueses regressaram. Uma Europa que fez a civilização mas que já não é o farol da humanidade. Este regresso não tem sido fácil, como nunca o são os regressos. Um regresso tanto mais difícil, para um povo como o português que sempre viveu movimentos de saída, em busca do mundo, da casa prometida, em busca de um tempo diferente e porque, hoje, essa mesma Europa, também vive um tempo de retorno. Não talvez o eterno retorno de que falava Nietzsche, mas seguramente um retorno pouco sereno, revelando que os fantasmas não estão liquidados, antes ressuscitam sob novas formas, às vezes mais ignóbeis e subtis.
Os portugueses precisam de enfrentar esse regresso, saber se vale a pena continuar a acreditar num sonho europeu, numa Europa que constitua um futuro. Saber o que significa, o que é a Europa, saber o que os espera. Os portugueses precisam de deixar de ter apenas passado. Os portugueses devem de deixar de viver exclusivamente da grandeza da memória. Só assim afirmaremos a nossa diferença que passou e sempre passará, pela força da nossa universalidade num contexto humanista, livre e responsável.
Mas afinal o que é ser português, hoje? Que identidade, face a uma Europa sem fronteiras, perante uma Europa que se diz dos cidadãos, mas que vive atualmente refém dos mercados financeiros?
Ser português, dizia Teixeira de Pascoais, com o seu fervor do tempo, é uma arte, e uma arte de grande alcance nacional, e, por isso, bem digna de cultura (…) O fim desta Arte é a renascença de Portugal, tentando pela reintegração dos portugueses no carácter que por tradição e herança lhes pertence, para que eles ganhem uma nova actividade moral e social, subordinada a um objectivo comum superior. Em duas palavras: colocar a nossa Pátria ressurgida em frente do seu destino.
Esta citação do poeta da “Águia” tinha um tempo e um modo. Desde aí muita coisa mudou. Portugal é outro, outros são os portugueses. Há uma cor diferente no mundo. Perdemos o Império, perdemos o ouro do Brasil, perdemos África e agora voltámos a perder a nossa soberania financeira. Ficámos sem um desígnio nacional. As caravelas regressaram à origem do Ocidente dos Estados (para usar a feliz expressão de Adriano Moreira).
Somos portugueses e europeus. A nossa identidade é múltipla, plural, não exclusiva. Mas queremos ser portugueses numa Europa forte, renascida que sempre conteve as sementes de muitos futuros…
Professor universitário