Em 1987, no estádio do Maracanã lotado, Edir Macedo, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, pediu aos fiéis que usavam óculos que os deitassem fora porque a fé curaria a falta de visão. Milhares de óculos foram deitados em sacos e as pessoas ficaram a ver mal. A esquerda trata o assunto da imigração com este mesmo fervor religioso que provoca cegueira.

O governo socialista deixou 400 mil migrantes à sua sorte, e dos traficantes, pendurados na AIMA, e imagens nas televisões de filas de proporções bíblicas, mas a única coisa que Marta Temido diz em campanha é que vem aí a extrema-direita e que vão endurecer as regras da imigração.

Quanto ao crescimento da extrema-direita, Marta Temido pode começar por fazer um mea culpa já que o Chega nasceu e chegou a terceira força política em Portugal durante os oito anos do governo do PS de que ela fez parte. Porque protestam tanto as pessoas Marta Temido? That is the question.

Quanto ao endurecer das regras da imigração, Marta Temido tem razão, mas falta-lhe dizer que essas regras dignificam as condições de vida dos que vêm para cá trabalhar, fugidos da desgraça e à procura de uma vida melhor, e tranquilizam os que já cá estão.

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O governo de Luís Montenegro apresentou agora um pacote de medidas que parte do princípio que Portugal precisa de imigrantes por motivos demográficos, sociais e económicos, mas que essa imigração tem de ser regulada e fiscalizada, tem de ser feita uma integração humanista e atraído talento estrangeiro. Inteligentemente e, nas palavras do primeiro-ministro, também não pode acontecer que “deixemos avolumar em alguns pontos do território, pessoas em especial vulnerabilidade, que vivem 20 ou 30 numa casa ou pequeno armazém, ou que as deixemos concentrar porque não criamos a integração que devemos e que essa imagem dê uma sensação de insegurança aos demais”. Comecemos por aqui.

Estávamos enredados nesta estupidez de não podermos abrir a boca a expressar medo porque se era logo humilhado, taxado de fascista, inculto ou xenófobo. Talvez a esquerda devesse ler mais os seus poetas, como o José Martí, inspiração da revolução cubana: “¡Yo soy honrado, y tengo miedo!”. Quando vemos milhares de pessoas na rua, sobretudo homens novos, sem família, com uma cultura diferente da europeia (aqui as mulheres são particularmente sensíveis. Num país em que já somos muito discriminadas, temo que isto possa ser negligenciado), a viver amontoados (quem arrenda uma casa a 10 pessoas cobra uma renda astronómica, que nenhuma família portuguesa poderia pagar pela mesma casa naquele sítio ainda por cima alimenta a revolta), sujeitos a uma pobreza indescritível e que já sofreram violências inomináveis, é normal e desestabilizador que nos sintamos inseguros. Em Lisboa e no Porto, mas também em qualquer terra mais pequena do interior com indústria ou agricultura e que hoje veem dia a dia grupos de homens migrantes a caminhar nas ruas, no supermercado e juntos na praça central ao domingo. Nestes sítios a integração pode ser mais fácil, mas a paisagem mudou definitivamente. Basta fazer a A1 e encontrar centenas em carrinhas, nas áreas de serviço, a caminho das empreitadas. O governo, os eleitos, têm de tranquilizar o país todo. O problema não desaparece por o reprimirmos, nem por envergonharmos quem questiona (então esquerda?). Grosso modo, não temos de ter todos o complexo da Lucy do Coetzee.

Talvez a esquerda não conheça bem a Europa a cujo Parlamento se candidata, mas Ventura, Meloni ou Le Pen não fizeram golpes de Estado. Talvez nos últimos anos não tenham ido a Roma, uma capital europeia, nem precisam de ir a Lampedusa, e não tenham visto em qualquer entrada da cidade os milhares de homens migrantes deitados e sentados nas praças e viadutos. Se vissem, achariam que nenhum ser humano devia ter de se encontrar naquela situação desumana e achariam normal que os italianos temam um bocadinho. Bastava ir a Espanha, aqui ao lado, que tem dois muros em Ceuta e Melilla para impedir a imigração vinda de Marrocos e que o seu colega do partido socialista, coligado com a extrema-esquerda, Pedro Sanchez, presidente do governo espanhol há oito naos, não derrubou.

Mas o que importa é gritar contra a Ursula von der Leyen e o PPE, que vão unir-se a Giorgia Meloni que preside ao CRE e que a extrema-direita e o apocalipse vêm aí, quando na Europa Meloni até é descrita como pró-europeia e conservadora de direita – uma mistura sem paralelo na Europa de hoje. Mas para Marta nada disto acontecerá, claro, se António Costa precisar do apoio de Meloni para ser Presidente do Conselho Europeu. Aí há apenas um risco de captura. No fim do dia é uma questão de matemática, não é verdade?

Ironicamente, a estratégia do PS é também a de instalar o medo, outro do que aquele que o Chega pretende instalar, mas é igualmente uma estratégia de medo.

O que o PS realmente teme em von der Leyen, no PPE, é o mesmo pragmatismo que admirou em António Costa quando se uniu a comunistas apoiantes de Putin, Lenine, Estaline e Kim e à extrema-esquerda. À direita uma estratégia de poder que possa não passar pelos socialistas, ou em que eles e os liberais e o PPE não cheguem, que até pode isolar o ID de Marie Le Pen — há muitas extrema direitas –, impedir o desaparecimento do centro-direita e destruir o sonho socialista de serem charneira e detentores ad aeternum do poder político em Portugal e na Europa.

Passemos agora aos migrantes, que enquanto cá estão são portugueses, ou europeus. Pelos vistos até agora não foram dias perfeitos, nem andamos todos a beber sangria no parque.

Segundo o Eurostat, citado pelo Pordata e com número de 2022, mais de um terço dos estrangeiros têm contrato de trabalho temporário, a média entre os trabalhadores portugueses é de 16%, e Portugal é o quarto país da União Europeia com maior precariedade laboral entre os estrangeiros. 31% dos estrangeiros residentes em Portugal estão em situação de pobreza ou exclusão social, 11% acima da média da população portuguesa e usufruem menos de prestações sociais. 34% desses 31 vêm de fora da Europa.

Depois o que salta pelos olhos dentro, o Banco de Portugal publicou um estudo que procura caracterizar os indivíduos de nacionalidade estrangeira que residem em Portugal e que detêm um contrato de trabalho registado na base de dados da Segurança Social e concluiu que em termos de idade, a mediana dos trabalhadores estrangeiros foi de 33 anos em 2023, o que compara com 42 anos para os trabalhadores com nacionalidade portuguesa. Já quanto ao peso das mulheres nos trabalhadores com nacionalidade estrangeira, em 2023, representamos apenas 36,7% do total, mas com diferenças assinaláveis entre nacionalidades: enquanto nos trabalhadores de nacionalidade brasileira e cabo-verdiana as mulheres são mais de 40%, no caso dos trabalhadores que vêm da Índia e do Bangladesh somos apenas 7,5% e 2,6%.

Portugal tem, como o resto da Europa, um problema demográfico que se está a transformar também num problema de mão de obra. Segundo projeções da ONU, 2024 poderá marcar um ponto de viragem na história da UE, com a população de 448 milhões a iniciar um declínio que deverá persistir, marcando uma redução sem precedentes em tempos de paz (no sentido em que a não há uma guerra no território da EU). A inversão demográfica da UE, há muito prevista, parece estar a ocorrer mais cedo do que muitos especialistas previam. Embora nas últimas décadas a imigração tenha ajudado a aumentar o número da população e a maior participação dos imigrantes e das mulheres na força de trabalho tenha compensado a queda acelerada da população em idade ativa da UE, em breve nem estes fatores não serão suficientes.

Em Portugal, os trabalhadores estrangeiros por conta de outrem registados na Segurança Social aumentaram 35,5% em 2023, para 495.200, representando 13,4% do total. Em 2023, 22,2% das empresas tinham trabalhadores com nacionalidade estrangeira, o que compara com 7% em 2014.

Muitos dos 27 países que compõem a UE registaram taxas de natalidade extremamente baixas durante décadas. Com a parte mais produtiva da população a diminuir, há uma pressão adicional sobre as finanças públicas, consequências para o desempenho e as perspetivas económicas e para a posição geopolítica da UE.

Há muitos fatores a compatibilizar: o económico, o social, a vida de quem vem e a vida de quem já cá está. Este é o problema da Europa, a extrema-direita medra nele, mas o problema está a montante.