Desde o início da ofensiva militar russa na Ucrânia, em fevereiro, os meios de comunicação social e as redes sociais têm transmitido relatos da morte de civis, de grandes movimentos de refugiados e pessoas deslocadas, e de várias destruições, bem como o cometimento de exações que constituiriam crimes internacionais. Ultimamente, centenas de corpos foram encontrados pelas ruas e em valas comuns após a retirada de tropas russas da cidade de Bucha, nos arredores de Kiev.
Cada um dos campos acusa-se mutuamente de graves violações, a Rússia culpando a Ucrânia de utilizar civis como escudos humanos e de falsificar as imagens divulgadas e a Ucrânia denunciando massacres e o uso de armas indiscriminadas pela Rússia. Embora esta retórica possa ser vista como um factor contribuindo para a propaganda de guerra e a desacreditação do adversário, também levanta a questão do papel do Tribunal Penal Internacional (TPI) quando estão envolvidos dois países não partes no Estatuto de Roma que estabelece esta jurisdição.
O regime de direito comum dos crimes internacionais
O TPI é a única jurisdição criminal internacional permanente e de vocação universal. Tem também a vantagem de considerar irrelevantes as funções políticas e militares oficiais e, portanto, as imunidades que lhes estão associadas.
Para que um crime seja da competência material do TPI, deve tratar-se de um dos crimes internacionais referidos no Estatuto de Roma, ou seja, o crime de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão. Tendo em conta a sua gravidade, tais crimes são imprescriptíveis.
Além do mais, os crimes alegados devem ainda preencher uma das duas condições seguintes: terem sido cometidos por um cidadão (competência pessoal) ou no território (competência territorial) de um Estado Parte no Estatuto de Roma ou de um Estado que tenha depositado uma declaração de aceitação da jurisdição do TPI.
A competência do TPI pode então ser exercida se uma situação em que crimes pareçam ter sido cometidos for denunciada ao Procurador quer por um Estado Parte, quer pelo Conselho de Segurança, ou se o Procurador decidir abrir um inquérito por iniciativa própria.
Claro, devido à posição da Rússia como membro permanente do Conselho de Segurança dotado de um direito de veto, deve ser descartada a possibilidade de uma denúncia por este órgão. Até à data, o Conselho submeteu situações ao TPI apenas em duas ocasiões no caso Darfur, Sudão (2005) e no caso da Líbia (2011).
Além disso, nem a Rússia nem a Ucrânia são partes no Estatuto de Roma. Todavia, o Governo ucraniano reconheceu por duas vezes a jurisdição do TPI. Numa primeira declaração de 2014, a Ucrânia admitiu a jurisdição do TPI sobre os crimes alegadamente cometidos no seu território entre 21 de novembro de 2013 e 22 de fevereiro de 2014. Numa segunda declaração, de 2015, a Ucrânia alargou depois esse quadro temporal por um período indeterminado, a fim de abranger os crimes que continuariam a ser praticados no seu território após 20 de fevereiro de 2014.
Desde os primeiros dias do conflito na Ucrânia, o Procurador do TPI, Karim Khan, declarou a sua vontade de iniciar uma investigação sobre esta situação, com a intenção de abranger “quaisquer novos supostos crimes que se enquadrem na jurisdição do meu Gabinete e que sejam cometidos por qualquer parte do conflito em qualquer parte do território da Ucrânia“. Apelou, portanto, aos Estados Partes para lhe submeterem tal situação e, desta forma, evitar a formalidade de um pedido de inquérito à Câmara Preliminar. Foram 41 os Estados Partes que responderam favoravelmente a este apelo, uma mobilização inédita de um terço do conjunto dos Estados Partes que permitiu a abertura de um inquérito em março sobre os crimes cometidos na Ucrânia desde 2013.
Neste contexto, os desafios não deixarão de ser consideráveis. Por um lado, o TPI enfrenta dificuldades financeiras, o que exigirá a votação de um orçamento suficiente para financiar as investigações e os julgamentos, de modo a que o desencadear de novos processos não se faça em detrimento de outros. Por outro lado, o TPI não dispõe de forças policiais próprias, o que implicará obter uma cooperação plena dos Estados. Sem essa cooperação – e pode-se prever que será conflituosa, senão inexistente, no caso da Rússia – nomeadamente na recolha dos elementos de prova, na execução dos mandados de detenção, na autorização bem como na prossecução das investigações, os procedimentos iniciados pelo TPI não passarão de letra morta.
O regime específico do crime de agressão
O Estatuto de Roma também prevê a competência do TPI em matéria de crimes de agressão, pese embora esses obedeçam a um regime específico, que exclui qualquer papel dessa jurisdição no contexto do atual conflito na Ucrânia.
Se a invasão e o ataque do território de um Estado pelas forças armadas de outro Estado caracterizam distintamente um acto de agressão, a competência do TPI limita-se a actos de agressão que seriam praticados entre Estados que ratificaram tanto o Estatuto de Roma como as emendas de Kampala relativas ao crime de agressão. Até à data, dos 123 Estados Partes no Estatuto de Roma, apenas 43 também aceitaram as emendas de Kampala.
Assim sendo, para além da possibilidade irrealista de uma denúncia da situação pelo Conselho de Segurança, no que respeita aos Estados terceiros, como o são a Ucrânia e a Rússia, o Tribunal não poderá exercer a sua competência.
As outras vias de justiça acessíveis
Dado que a via do TPI é inacessível para o crime de agressão e semeada de armadilhas para os outros crimes, e dado também que esta jurisdição não tem vocação para julgar todos os autores de crimes internacionais, quer isto dizer que nenhuma outra via de justiça é acessível? Poderão existir alternativas a nível nacional e a nível internacional?
Sendo a justiça internacional complementar da justiça nacional, uma outra via é a dos tribunais internos. No âmbito da competência territorial, os tribunais ucranianos podem julgar os alegados crimes internacionais cometidos no território nacional. No âmbito da competência pessoal, o mesmo se aplica aos tribunais dos Estados da nacionalidade dos suspeitos de ambos os lados (competência pessoal activa) ou da nacionalidade das vítimas (competência pessoal passiva), desde que os suspeitos possam ser julgados na sua presença e que não gozem de imunidade de jurisdição penal ligada às suas funções.
Além disso, os tribunais domésticos que reconhecem a competência universal poderiam julgar qualquer indivíduo por crimes perpetrados fora do território do Estado do foro e contra vítimas que não tenham a nacionalidade do Estado do foro. No entanto, os critérios para a sua aplicação são mais ou menos restritivos consoante os países e exigem, geralmente, não só a presença dos arguidos no território nacional dos tribunais competentes, mas também a inexistência de imunidade.
Em matéria de crimes internacionais, estes critérios podem ser flexibilizados. Por um lado, alguns tribunais nacionais poderiam julgar pessoas suspeitas de terem cometido um crime no estrangeiro e que não se encontrem no território nacional. Por outro lado, certos tribunais nacionais poderiam afastar a imunidade de antigos chefes de Estado ou de Governo relativamente a actos praticados durante o exercício das suas funções, mas destacáveis das mesmas – tais como crimes de guerra ou crimes contra a humanidade – por não entrarem nas funções consideradas normais do governo de um Estado.
Por último, a nível internacional, tendo em conta os obstáculos colocados ao TPI quanto à perseguição do crime de agressão e à impossibilidade de julgamentos in absentia, e em conformidade com o desejo expresso por eminentes internacionalistas, outra via poderia ser a da criação de um tribunal ad hoc.
Tal tribunal especial enfrentaria, todavia, desafios inextricáveis, a começar pela iniciativa da sua criação. Devido ao veto russo, esta não poderia provir do Conselho de Segurança. Eventualmente, poderia provir da Assembleia Geral se se verificasse uma vontade maioritária a favor do estabelecimento de tal jurisdição. Contudo, para além das questões concretas relacionadas com a escolha da sede do tribunal, o seu financiamento, a sua composição, a obtenção de provas, a detenção dos suspeitos, ou ainda a oponibilidade das imunidades, como poderia ser imposta a autoridade de um tribunal a um Estado que o recuse?
Perante tais dificuldades, alguns receiam que a criação de um tribunal especial neste caso seja uma falsa boa ideia. Pois, se não levar a cabo uma acção judicial, confirmaria aos Estados fortes que podem cometer agressões com toda a impunidade, mas, se levar a cabo uma acção judicial, não é certo que este precedente se repita numa configuração semelhante, o que reforçaria a intolerável selectividade de uma aplicação do direito internacional consoante dois pesos e duas medidas.
Uma acção judicial justa e eficaz exigiria certamente uma mudança de regime na Rússia para que os altos funcionários políticos e militares fossem julgados, quer a nível nacional pelos tribunais domésticos, quer a nível internacional pelo TPI, após a ratificação do Estatuto de Roma e das emendas de Kampala. Ora, tal cenário tornaria desnecessária a criação de um tribunal especial.
O conflito actual demonstra, assim, seguramente a necessidade de se reconsiderar o quadro inadequado do crime de agressão para o tornar mais facilmente justiciável. De um modo mais geral, demonstra igualmente que a luta contra a impunidade em todo o mundo impõe que se continue a pensar na eficácia e na legitimidade da justiça internacional que está estreitamente dependente do reforço dos padrões da justiça interna.