Os medos são normais, no sentido em que é frequente que as crianças se assustem com coisas que desconhecem ou que, conhecendo, não compreendem.
Quando bem enquadrados pelos adultos os medos podem ter um grande potencial no desenvolvimento das crianças. O enfrentar dos medos permite que elas desenvolvam a capacidade de decisão sobre como enfrentar desafios, fugindo da ameaça que constituem ou pedindo apoio e, através disso, ajuda as crianças a conquistar a sua autonomia, ganhando confiança e desenvolvendo a sua competência para lidar com o desconhecido que as ameaça. As crianças podem manifestar os seus medos oralmente (contando os seus medos), corporalmente (por exemplo, chorando) ou por atitudes e comportamentos menos explícitos (através da rejeição ou afastamento, por exemplo, escondendo-se). Existem muitos exemplos dos medos das crianças que se mantêm muitas vezes até à idade adulta. Falamos deles através dos testemunhos do Manuel, do Tomás, ambos de 6 anos, da Joana e Ana de 7 anos, da Rita de 8 anos, da Sara de 3 anos e do João de 61 anos.
Medo de filmes assustadores
O medo imaginário resultante de histórias e personagens de filmes com algumas personagens assustadoras e percecionadas como más, como por exemplo monstros, como nos contou Tomás de 6 anos: “Tenho medo dos monstros, nas selvas dos monstros” (sic.) ou fantasmas, como referiu Rita: “Tenho mesmo muito muito medo de filmes assustadores” (sic.). Muitas vezes os medos não são apenas das personagens, mas também de situações que ocorrem nas histórias, como nos contou Manuel: “Tenho medo das ravinas altas…” (sic). Segundo a tia de Manuel este medo tem origem no filme do Rei Leão. A mãe da Sara, refere que ela “é muito sensível às situações perigosas descritas nos filmes. Tem medo do Lobo Mau” (sic).
Medo de animais
Um dos maiores medos das crianças, é o medo de animais, como nos referiu o Manuel: “Tenho medo de cobras…porque uma vez fui ao jardim zoológico e vi …. tenho medo que os tubarões me comam…tenho medo de toupeiras, podem aparecer no caminho! Tropeçamos ok?” (sic.). Ou como nos contou a Joana: “Tenho medo de aranhas e cobras” (sic.).
Medos de distuações dramáticas
Certos medos das crianças aparecem devido a situações traumáticas vivenciadas que os assustaram, como o ter sido uma vez enrolada numa onda: “… tenho medo de ondas altas…de ondas muito altas…quando vejo uma onda muito grande, eu tenho medo” (sic., Manuel). Ou como nos descreveu a mãe da Ana que referiu que um dos maiores medos da sua filha, várias vezes hospitalizada, é o “medo/pânico de médicos, enfermeiros hospitais, devido ao stress que passou. Não sinto que tenha os medos “tradicionais”, mas sim estes medos mais apurados, fruto do seu percurso atribulado” (sic). Ou quando as crianças vivenciaram uma situação assustadora, como o atravessar uma estrada: “Eu tenho medo dos carros, podem-nos atropelar…já quase fui atropelado…” (sic., Manuel). Ou ainda o surgimento de novos medos. Desde que a casa de Manuel e Rita foi assaltada, eles passaram a ter medo dos ladrões. Como nos contou o Manuel, “tenho medo dos ladrões, porque eles podem roubar as coisas que gosto muito, que servem muito” (sic.). A Rita expressou o mesmo sentimento: “Eu tenho medo que à noite os ladrões venham cá a casa e assaltem a nossa casa e depois matem-nos” (sic.).
Medo de se perder
Um outro medo recorrente é o medo que as crianças têm de se perder. Como nos referiu o Manuel: “Tenho medo de me perder da minha mãe e do meu pai” (sic.), ou a Joana: “Tenho medo de me perder dos meus pais” (sic.), ou a Rita: “Tenho medo de perder a minha família no shopping…ou nalguma coisa” (sic.). Muito próximo deste, está também o medo de ser abandonado, de que se esqueçam deles, como nos relatou o Manuel: “Tenho medo que os meus pais não vêm buscar na escola…porque às vezes eles se atrasam…“ (sic.). A mãe da Sara referiu que a filha “tem medo que eu vá jantar fora e não volte” (sic). A mãe da Sara, explicou que “acho que a Sara tem medo que os pais desapareçam” (sic).
Medo de falhar nas tarefas escolares
Um dos medos mais significativos das crianças mais crescidas, que já frequentam a escola, é o de não serem capazes de corresponder nas tarefas de aprendizagem que lhes são propostas, como nos relatou a Rita: “Tenho medo de falhar em todas as fichas da escola…” (sic.).
Outros tipos de medos
Outros tipos de medos são partilhados, como o medo do fogo, como nos referiu o Tomás: “Tenho medo de tocar a mão no fogo…” (sic.). Ou como nos contou o Manuel: “Tenho medo da auto estrada…. Tenho medo que a minha casa se parta…. tenho medo da luz forte, porque pode parecer um raio e assim ficamos cegos… “(sic). O medo de barulhos como também nos relatou o Manuel: “Tenho medo quando os balões rebentam…” (sic.). Rita explicou-nos que tem medo de dar cambalhotas: “Tenho medo de dar cambalhotas, ficar de cabeça para baixo, eu lembro dessa diversão, eu estava de olhos abertos a fazer a cambalhota e vi a minha turma assim a dar a volta e foi muito aterrorizador…. (sic.).
Os medos entre irmãos transmitem-se
Uma vez Rita e Manuel foram ao jardim zoológico, e no reptilário a Rita teve muito medo quando se aproximou da zona do Dragão de Komodo. Nesse momento, o irmão não demostrou medo, chegando mesmo a dizer que gostava muito do Dragão de Komodo, mas o tempo foi passando e o medo da irmã Rita passou a ser o medo do irmão Manuel. Rita contou-nos: “tenho medo de Dragões de Komodo, eles podem-se libertar do jardim zoológico e depois estar na rua, e nós não podemos mais ir à rua até que ele seja apanhado e ele consegue abrir a fechadura da nossa porta e também consegue rasgar a nossa porta porque é de madeira e depois entra e pica-nos e mata-nos” (sic.). E Manuel: “Tenho medo de Dragões Komodo, porque podem aparecer por baixo e podem morder-me e podem vir-me comer” (sic.).
Os medos dos pais são os medos dos filhos
O medo é construído através dos outros, das pessoas que vivem com as crianças. As crianças são um mata borrão, o medo pode ser qualquer coisa que se torna “contagioso”. A segurança ou insegurança dos pais pode sossegar os filhos ou transmitir-lhes os medos. Os filhos vivem e observam os medos dos pais e, deste modo, herdam alguns medos dos seus pais. Como nos conta o João (61 anos): “E dois medos (medo de entrar em locais fechados e com muito pouco espaço e medo das alturas), que a minha mãe também tem e que me faz muitas vezes pensar que os herdei dela. Falava-me deles frequentemente e perguntava-me se não sentia isto ou aquilo, quando me encontrava em situações destas” (sic). A mãe de Ana contou-nos que “a minha filha tem medo da separação, principalmente da mãe. Eu também o tive a vida toda” (sic.). Uma criança pode ter medo de alguma coisa porque alguém na sua família tem esse medo. Tal como a mãe de Rita conta-nos que os medos da filha “de perderem-se, de inclinar-se nas barras ou serem atropelados são claramente medos meus” (sic.). A mãe de Sara disse-nos: “Lembro-me de em miúda ter esse medo (que os pais desapareçam) e de, até mais velha (com uns 6 ou 7 anos), sentir que tinha de ir com a minha mãe para todos o lado para protegê-la caso lhes acontecesse alguma coisa” (sic).
Velhos medos
Não são só as crianças que têm medos, os adultos também os têm, e alguns dos medos que se criam na infância desaparecem, mas outros mantêm-se até à idade adulta, como nos relata o João: “Tenho alguns medos que me atormentam desde criança. O medo das alturas. Sinto vertigem quando subo a um plano alto e espreito para baixo, mesmo quando existe um muro ou barreira de proteção. O exemplo é quando penduro a roupa no estendal de fora, na marquise de minha casa, de uma altura equivalente a 6.º andar, ou quando visito uma catedral e quero subir à cúpula de uma catedral. Ou como também referiu: “Outro dos meus medos, também desde criança, é o de entrar em locais fechados e com muito pouco espaço. Sinto falta de ar e muita ansiedade. Exemplo disso é quando fico fechado num elevador que parou por avaria, quando tenho que fazer algum exame nas máquinas da ressonância magnética” (sic).
Controlar ou espantar os medos
As crianças têm recursos cognitivos e emocionais para enfrentar os seus medos. Os medos podem ser controlados pelas próprias crianças, através de várias estratégias. A Rita contou-nos como enfrenta o medo de animais como o Dragão de Komodo: “O que me faz às vezes ultrapassar esse medo, é a minha mãe ajudar-me nisso e pensar que o Dragão de Komodo está por trás da parede mais indestrutível do mundo” (sic.). O Tomás explicou que tenta combater o medo do fogo “tendo coragem, ter força para não se ter medo” (sic). Para vencer o medo dos ladrões, a Rita disse-nos que “o que me ajuda às vezes a ultrapassar este medo…é pensar que os ladrões não podem entrar porque não tem fechadura e a porta é metálica e a porta está primeiro” (sic.). E o Manuel mencionou que apaziguava esse medo usando “uma camara de vigilância” (sic.). A Rita referiu que perante o medo de dar cambalhotas “o que me ajuda às vezes a ultrapassar este medo…é chorar” (sic). A mãe de Sara mencionou que a filha “acaba por brincar muito ao Lobo Mau, talvez para se libertar desse medo… e que gosta de confirmar, algumas vezes que eu volto para casa ainda naquela noite” (sic.).
Este tipo de recursos permite que, ao longo da vida, as pessoas criem as estratégias mais adequadas para enfrentar os medos que persistem. Para combater o seu medo das alturas, João mencionou: “… procuro uma posição de segurança encostando-me a qualquer coisa e ficando com o tronco afastado do muro ou barreira, e procuro não olhar para baixo” (sic). Ou no caso do medo dos locais fechados e com muito pouco espaço: “…procuro fechar os olhos, lembrar-me de espaços abertos e controlar a respiração” (sic).
Em muitos casos, as crianças precisam de atenção e de cuidado em relação aos seus medos, de quem as ajude a compreendê-los e desmistificá-los. As crianças imaginam que os pais podem espantar os medos para bem longe. Isso pode ser feito, recorrendo a livros que abordam de uma forma pedagógica os medos, ou através de momentos de expressão oral, ou através de jogos expressão dramática, plástica, musical ou motora, em que as crianças podem exprimir os seus sentimentos, receios, emoções e ansiedade. Os adultos, sobretudo os pais, também podem ajudar a combater os medos dos filhos com um colinho, um abracinho, ou ficar apenas ali ao seu lado, a simples presença de alguém securizante pode tranquilizar o sentimento de medo, afastando os perigos reais ou imaginários.