‘Os condenados da terra’ (1961), de Frantz Fanon, foi traduzido e publicado em Portugal (2015). A contracapa apresenta o argumento: «(…) as nações europeias chafurdam na mais ostensiva das opulências. Essa opulência europeia é literalmente escandalosa porque foi construída à custa dos escravos, alimentou-se do sangue dos escravos, vem diretamente do solo e do subsolo desse mundo subdesenvolvido. O bem-estar e o progresso da Europa foram construídos com o suor e os cadáveres dos negros, dos árabes, dos indianos e dos amarelos. Isso, decidimos nunca mais esquecer» (citação p.98).

No prefácio intitulado ‘A pertinência de se ler Fanon, hoje [2015]’ Inocência Mata, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, declara o autor «(…) um dos maiores pensadores do século XX» (p.33).

Frantz Fanon nasceu numa família de classe média da Martinica (América Central), passou pela Argélia durante a segunda guerra mundial (África Árabe ou Branca, terra-mãe de antigos colonizadores escravocratas) e viveu um período de preparação académica e atividade intelectual em França (Europa Ocidental), extensível a outras paragens ocasionais do Norte de África. Tal experiência em 36 anos de uma vida terminada poucos dias após a publicação do livro não fazem necessariamente do autor especialista de um fenómeno cuja componente substantiva equacionada a propósito dos seus escritos decorreu numa outra África, a Subsaariana, a África Negra.

Que se saiba, a dominação colonial europeia no Magrebe não abalou as tradições linguísticas, religiosas, culturais e de cultura escrita, urbanísticas, económicas ou, em geral, civilizacionais do mundo árabe islâmico. Pelo contrário, o impacto da presença europeia a sul do Saara foi de tal modo distinto que não legitima análises por analogia ou telepatia, por muito que o autor se escude em alegações retóricas (pp.164 e segs.).

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Seduzidos pela fluência de um discurso febril, académicos e intelectuais beberam e bebem muito nas fontes fanonianas ou equiparáveis e pouco ou quase nada na fonte original, o senso comum africano. As lucubrações de Frantz Fanon são, na hipótese benigna, ficcionais e, na hipótese rigorosa, dos mais virulentos panfletos de ódio e subversão violenta contra o ser, contra o que indivíduos e povos são. Aconteça o que acontecer, o presente jamais resgatará a identidade criminosa de uns e a identidade de vítima de outros.

O texto revela um mestre na lógica argumentativa da desconfiança patológica na relação com os outros (pessoas e povos) e na manipulação tosca da realidade. Todavia, os meios universitários têm-lhe concedido por mais de meio século o privilégio de propalar à luz do dia princípios da violência totalitária. Da tipificação de Hannah Arendt, destaco a definição do ‘inimigo objetivo’, o grupo condenado pela ideologia ao extermínio independentemente da conduta individual dos seus membros.

Frantz Fanon limita-se a fazer transitar a objetivação do Mal do ‘burguês’, de Karl Marx e Friedrich Engels, ou do ‘judeu’, de Adolf Hitler, para o branco europeu ‘colonialista’, ‘imperialista’, ‘burguês’ e ‘capitalista’. Fá-lo porque também objetiva a vítima. Não é o ‘proletário’ (raro em África) e nem poderia ser a ‘raça ariana’. Coloca no pedestal o ‘colonizado’ ou o ‘povo colonizado’, mas não um qualquer, antes o ‘puro’à moda ariana. É o ‘árabe’ou o ‘africano’que suportaram o fardo histórico da opressão sem se deixarem contaminar pelo poder ‘colonialista’europeu, ao contrário das suas ‘elites’ em ‘pequeno número’ ou ‘microburguesia’.

Seguindo à risca o guião dos paranoicos totalitários, as categorias do pensamento referidas e outras são imutáveis, coesas, estáticas, sem matizes. Se um jogo argumentativo com tais pressupostos é sempre uma fraude intelectual, em Frantz Fanon é de cátedra porque filiada a uma ostensiva orgia de violência.

Realizei trabalhos de campo no meu país natal, Moçambique, entre 1997 e 2015 para conversar com os mais variados tipos sociais. Entre as conclusões sólidas destaco a heterogeneidade das apreciações sobre as relações com os antigos colonizadores na perspetiva dos antigos colonizados. Basta admitirmos que a vida vivida dificilmente permite omitir a ultrapassagem dos bloqueios das sociedades tradicionais africanas proporcionada pelo surgimento da sociedade colonial, bem como que a rutura com os colonos europeus não significou o paraíso nas relações de poder entre africanos.

A realidade vivida jamais legitima a tese do ‘colonizado’ enquanto massa coesa, homogénea, inabalável contra os colonos europeus, mesmo e sobretudo os mais pobres. A realidade esteve e está nos antípodas do pensamento monolítico de Frantz Fanon. Como bom revolucionário, revela não se ter preocupado em ajustar o seu pensamento ao real. Antes procurou colocar o último em ordem, tal como um físico talvez devesse ter o direito de censurar a estúpida rebeldia dos átomos: «(…) há que dizê-lo, as massas mostram uma total incapacidade para apreciar o caminho percorrido, o camponês continua a amanhar a terra e o desempregado que assim se mantém não conseguem (…) convencer-se de que algo mudou verdadeiramente nas suas vidas» (p.173).

Iluminados por Fanon, desprezar os ‘assimilados’, os africanos que conseguiram dignificar-se e às suas famílias valorizando-se na sociedade colonial (sempre muitíssimo mais do que a sociedade do colono europeu), passou a ser ‘objetividade’ analítica. De nada importa estar em causa dos fenómenos históricos mais interessantes de ‘multiculturalismo’ (admitindo a utilidade do termo), posto que tudo o que teve origem no branco tem de ser extirpado. A África, mesmo conquistando as independências, terá sempre de fazer esforços colossais para ‘libertar as mentes’, limpá-las de resquícios do contacto com os europeus e com a sua cultura colonial, tanto quanto precaver-se das novas pestilências ‘neocolonialista’ ou ‘neoliberal’. Em 1961, o precursor Frantz Fanon semeou a magia dessas palavras que prolongariam no tempo a representação execrável do europeu e do branco. Não importa o absurdo do autor propalar com veemência a defesa identitária dos africanos num refinado francês (mas poderia ser em inglês ou português).

Mais de meio século passado, a mesma lógica argumentativa paranoica é razão maior para uma professora universitária, Inocência Mata, assumir em Lisboa ‘A pertinência de se ler Fanon, hoje [2015]’.

Comparado, o ‘Mein Kampf’ (1925), de Adolf Hitler, teve tripla vantagem: não foi obra de culto nas universidades; não teve difusão por todos os continentes; e preservou a decência de lançar a semente venenosa em terra própria forçando os da casa a terem de curar a sua demência coletiva ao fim de duas décadas.

O lado sórdido da fúria inquisitorial de Frantz Fanon resulta também da sua técnica retórica usar e abusar da adjetivação com grande vantagem para a depreciativa, atitude nos antípodas dos mais elementares critérios da qualidade dos discursos sobre a condição humana e a justiça.

No ciclo do impacto sempre crescente de ‘um dos maiores pensadores do século XX’ (dos anos sessenta à atualidade), os auto legitimados pensadores de África tudo têm feito para aniquilar o melhor da herança colonial europeia, desperdiçando o mais raro, original e notável contributo de modernização do continente, apesar de todas as violências que, de resto, África nunca conseguiu exorcizar antes, durante e após a dominação europeia. E nada indicia que os africanos voltem a beneficiar de uma herança equiparável.

Na Europa Ocidental, no topo dos responsáveis pela propagação do totalitarismo intelectual, semente sempre latente de violência social e política, encontram-se os académicos no seu conjunto por se deixarem arrastar numa indisfarçável cobardia intelectual dentro das suas próprias instituições. Não se detetam reações individuais salientes face a uma pregação milenarista (experimente-se substituir ‘colonialista’ por ‘demónio’) transformada em suprassumo do saber em salas de aula da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, do ISCTE-IUL e por todo o lado onde se ensina Frantz Fanon.

Versão recauchutada do Führer, resignemo-nos ao grande intelectual que fez nascer, no século XX, o tempo de os europeus (e os) brancos pedirem desculpa por existir(em). Alguns portugueses já provaram dessa fúria aniquiladora nos idos de 1974 e 1975: «Trabalhar é trabalhar pela morte do colono. (…) O homem colonizado liberta-se na e pela violência» (pp.88-89). Ao que o messias da Martinica acrescenta: «A reparação moral da independência nacional não nos cega nem nos alimenta. A riqueza dos países imperialistas é também a nossa riqueza» (pp.103-104). Os apóstolos da Igreja Universal das Universidades (passo a redundância) cumprem a missão de propagarem os sagrados ensinamentos do Profeta Fanon na preparação do advento do êxodo terceiro-mundista rumo à redentora Ocidental Terra Prometida. O Mediterrâneo é o purgatório que anuncia o direito ao céu na terra do novo povo eleito.