O Verão de 2000 é dos mais excitantes de sempre. O Sporting é campeão nacional ao fim de 18 anos, o Deportivo é campeão espanhola pela primeira vez, com Pauleta no plantel. É isso mesmo, a Península Ibérica está louca. Lá fora, Portugal deslumbra no Euro (meias-finais) e Fernanda Ribeiro é bronze nos 10.000 metros nos Jogos Olímpicos de Sydney. Faltam mais dados, como as transferências de JVP e Figo. Um sai do Benfica (como capitão) para o Sporting, o outro troca o Barcelona (como capitão) pelo Real Madrid. Ambos fazem as manchetes dos jornais desportivos e generalistas no dia 24 Julho, faz hoje 20 anos.

JVP faz o primeiro treino de sempre em Alvalade e é aclamadíssimo, Figo apresenta-se no Santiago Bernabéu contra todas as previsões. De Barcelona, queremos dizer. Na véspera, dia 23, ainda há catalães quem interpretam o silêncio de Figo como de ouro para baralhar as extravagantes promessas eleitorais do presidente madridista Florentino Pérez. É o amor à camisola. Dizem eles. E dizemos nós. Afinal de contas, Figo é um ícone em Barcelona e não há o porquê de se sentir mal-amado. Pelo contrário. Figo é a cara do Barcelona. Se sair para o Real, madre mía. Se sair meeeeesmo, faço já a lista dos sete melhores momentos de Figo.

9 Setembro 1995. Conquistada a Taça de Portugal pelo Sporting (vs Marítimo, 2-0 com bis de Iordanov), o Sporting deixa sair Balakov para o Estugarda e Figo para o Barcelona. Lá, em Camp Nou, o 7 continua dele. Por força do estatuto e também do talento. Quem o diz é Cruijff. “Figo vai fazer a diferença. Não só no Barça como na Liga espanhola. Vocês vão ver…” Ai sim, e quando? A estreia faz-se na tarde-noite de 9 Setembro 1995. É um sábado e joga-se a segunda jornada da Liga. Cruijff lança-o sem medos, num 11 com Busquets à baliza, Ferrer, Abelardo e Sergi na defesa, Pep a 4, Amor e Óscar à sua frente, Figo, Hagi e Jordi no apoio ao bósnio Kodro.

A imprensa catalã elege Figo o melhor em campo sem pestanejar. Aventureiro, desbloqueador de problemas e vertical, eis alguns dos mimos dos jornalistas, encantados com a categoria do extremo. O problema é o resultado. O Barça só chega ao empate em cima do minuto 90, com um penálti de Kodro, o herói com um bis. “Ainda temos de melhorar muito porque estamos obrigados a ganhar, sobretudo em casa”, diz Figo na zona mista. “Como sofremos o primeiro golo muito cedo, jogámos mais com o coração do que com a cabeça. Em vez de trocarmos a bola com tranquilidade, fomos amigos da pressa e isso provoca imperfeição num toque aqui e ali.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

10 Fevereiro 1996. Nem Barça nem Madrid ocupam o primeiro lugar da Liga. O líder é o Atlético (seria campeão e vencedor da Taça do Rei, uma dobradinha nunca mais repetida). É a primeira vez em anos e anos que tal sucede. Isso não significa nada, mesmo nada, um Barça-Madrid arrasta uma multidão ao estádio. Vai daí, 115 mil espectadores em Camp Nou.

No banco, Cruijff come chupa-chupas ao lado do guarda-redes suplente Lopetegui. Sim, esse. No relvado, Kodro marca mais dois. O primeiro e o terceiro. O golo do meio é de Figo, num remate fulminante dentro da área, após amortie de Guardiola. Nos festejos, tapa a cabeça com a camisola. É uma foto icónica, manchete do “El Mundo Deportivo”.

12 Março 1997. Demasiada, demasiada, demasiada emoção. Nunca é demais dizer demasiada emoção para um jogo com 0-3 ao intervalo, 5-4 no final, um póquer (Pantic), um hat-trick (Ronaldo) e um guarda-redes em lágrimas (Vítor Baía). O Barça-Atlético é um hino ao futebol, inesquecível em todos os sentidos. Com 2-2 no Vicente Calderón, basta um 0-0 ao Barça para chegar à meia-final da Taça do Rei. Mas não, a equipa de Bobby Robson faz o mais difícil e escala uma montanha gigantesca. Qual é o melhor golo? De Figo, claro. Um pontapé do meio da rua (é o 3-4) e o grito de revolta como que a avisar da reviravolta, provocada pelos golos de Ronaldo (72’) e Pizzi (81’).

28 Junho 1997. Santiago Bernabéu, casa do Real Madrid. Há um cenário mais propício para o Barça levantar uma taça? Só se fosse o Camp Nou. O Betis adianta-se duas vezes, por Alfonso e Finidi. O Barça faz 1-1 por Figo e o 2-2 por Pizzi. No prolongamento, Figo fixa o 3-2 aos 114 minutos numa jogada iniciada por Amunike. É a despedida em grande de Bobby Robson, vencedor da Supertaça espanhola, Taça das Taças e Taça do Rei. Só lhe falta a Liga espanhola, pertença do Real de Capello (e, vá, Secretário).

7 Março 1998. Dois amarelos em quatro minutos ditam o vermelho a Hierro aos 51’. A partir daí, o clássico desequilibra-se por completo. O Madrid, que atirara duas bolas ao poste na mesma jogada por Karembeu e Sávio, encolhe-se e o Barça agiganta-se. Mérito de Rivaldo, autor das assistências para o 1-0 de Sonny Anderson e o 3-0 de Giovanni. Mais uma vez, o 2-0 ao Madrid pertence a Figo. É um lance divinal em que o português encara Roberto Carlos antes de desviar a bola para um remate imparável, sem hipótese para Illgner. O 7 enche o Camp Nou e é novamente eleito o melhor em campo, para alegria de Van Gaal. “O Luís é fortíssimo no um contra um. A partir de hoje, é o melhor do mundo nesses lances. Que categoria.”

5 Janeiro 2000. Eleito o melhor do mundo no dia 20 de Dezembro de 1999, à frente do inglês David Beckham e do ucraniano Andrei Shevchenko, o brasileiro Rivaldo chega a Barcelona com tiques de vedetismo e recusa-se a jogar como extremo. Van Gaal anota a petição e afasta-o da equipa. O Bola de Ouro pede então desculpa, mas já não vai a tempo de jogar com a Real Sociedad na noite de Reis. E é Figo quem joga encostado à esquerda para assumir o jogo e conduzir o Barça à vitória por 3-1, com dois golos da sua autoria. E ainda assiste o 2-0 de Litmanen, além de ver Simão Sabrosa falhar um penálti.

18 Abril 2000. O Barça perdera 3-1 em Londres e tem de ganhar 2-0 ao Chelsea para garantir um lugar nas meias-finais da Liga dos Campeões. É de Figo o 2-0 e é também Figo o actor principal do penálti de Babayaro no 4-1 de Rivaldo, em pleno prolongamento. Acaba cinco-um. Melhor em campo? Essa é boa. Luís, pois claro.

Ora bem, Figo é capitão na ausência de Pep Guardiola, o seu amigo nos bons e maus momentos, e está concentrado no Euro-2000. Em cinco anos de Barcelona, acumula sete títulos entre duas Ligas, duas Taças do Rei, uma Taça das Taças, uma Supertaça espanhola e outra europeia. Jogos, qualquer coisa como 249. Golos, toma lá 45. É obra. E vai acabar abruptamente.

O Euro-2000 começa e Figo deslumbra. O golo do início da reviravolta vs Inglaterra é um mimo. Verdade, a bola ainda bate em Adams. E então? Seaman nem a vê. Já de férias, no dia 7 Julho, Figo telefona a um amigo jornalista do Sport e pede-lhe uma entrevista em que diz claramente: ‘Sou do Barça, em caso de vitória ou derrota de Pérez nas eleições do Real Madrid.” Uma semana depois, dia 13 Julho, o mesmo jornalista desloca-se ao Hotel Romazzino, na Sardenha, e Figo veste a camisola do Barça, como quem diz ‘daqui não saio, daqui ninguém me tira’. Puro engano.

O dia 24 Julho 2000 começa bem cedo. Joan Gaspart é eleito presidente do Barcelona durante a madrugada e telefona a Figo. Começa o regabofe, o impensável.

03.00 Duas horas depois de ser eleito presidente do Barcelona, Joan Gaspart telefona a Figo mas não o consegue convencer. “A sua voz estava triste. Agora, só lhe resta admitir que só quer ganhar mais dinheiro.”

09.00 Figo não aparece em Camp Nou, onde estava prevista a apresentação dos jogadores internacionais presentes no Euro-2000. Aí, até os mais irredutíveis optimistas percebem que a saída do capitão está mais que consumada

10.55 O jacto privado onde Figo viajou na companhia do seu empresário José Veiga aterra no aeroporto militar de Torrejón, em Ardoz. À sua espera, encontra-se Julio Senn, director-geral do Real Madrid. A comitiva abandona o recinto em dois carros oficiais do clube

11.10 Figo chega ao Hospital Rúben Internacional para efectuar os habituais testes médicos e abandona o local uma hora e 25 minutos depois, rumo aos braços de Florentino Pérez

12.10 O Real Madrid avisa por faxe a Liga Espanhola o depósito dos 10 milhões de pesetas da cláusula de rescisão mais IVA

13.30 Florentino Pérez abandona as instalações da sua empresa para se encontrar com Figo para discutir os últimos pormenores do contrato, válido por seis anos

14.33 Florentino Pérez sai do notário, visivelmente bem-disposto. Cinco minutos depois, é Figo quem sai, de semblante sério e acompanhado por Julio Senn

14.45 O Real Madrid deposita na conta da Liga Espanhola os 10 milhões de pesetas mais IVA. Figo é oficialmente o jogador mais caro do mundo: 12 milhões de contos, o equivalente a 59,8 milhões de euros

15.25 As dezenas de casas de adeptos de Figo ficam indignadas. Gonzalo Nevalo, presidente da peña Luís Figo de Cedillo (Cáceres), diz que nem Deus vai proteger o português e é proibido pronunciar o nome dele em qualquer circunstância

18.00 Figo entra pela primeira vez no Santiago Bernabéu como jogador do Real Madrid, acompanhado por José Veiga, Baidek, Futre e Jorge Gomes. É levado para a sala de troféus do estádio, onde o esperam 90 jornalistas de todo o mundo.

18.02 Entre cotoveladas e atropelos entre fotógrafos, Florentino Pérez pede tranquilidade para começar a falar. Ao seu lado está Alfredo di Stéfano, a lenda viva do Real Madrid. O discurso é breve

18.05 Numa imensidão de flashes e braços no ar para perguntas, Figo fala à Real Madrid pela primeira vez. Só diz umas quantas frases de circunstância: “Estou muito contente por estar aqui. Vou tentar dignificar ao máximo a camisola e o nome do Real Madrid nos próximos seis anos. E espero ser tão feliz aqui como o fui em Barcelona. Acima de tudo, só posso prometer trabalho. Vou tentar ganhar o máximo que o clube pode ambicionar.” Recusa responder a perguntas e segura a camisola número 10 (o 7 pertence a Raúl) (o mesmo Raúl que obrigaria Ronaldo a escolher o 9 em 2009)

18.15 Figo, Pérez e Di Stéfano encaminham-se então para o relvado do Santiago Bernabéu, onde há tempo para mais fotografias. O português continua pouco falador e com um ar sério. Cada passo do português, por mais ligeiro que seja, é copiado pelos 90 jornalistas numa curiosa dança tribal

18.45 Figo abandona o Santiago Bernabéu, de volta para Portugal, onde irá gozar a última semana de férias. O regresso a Madrid está marcado para o dia 31 Julho, onde já começa a trabalhar às ordens de Vicente del Bosque.