1Estamos lembrados: o PS tem a capacidade de se unir no dia seguinte de qualquer combate interno. Mas nem equivale a vitalidade – não votaram todos os que o poderiam ter feito em tão apregoada “mobilização” – nem dispensa a memória: os combates deixam feridas, também estamos lembrados de que algumas não sararam.
Ficou claro que houve militantes que prefeririam para líder outro que não o militante vencedor. E o país quando se desatordoar de festas, fios e fitas, de bacalhau e de broa, também talvez se venha a interrogar sobre a utilidade e o destino do seu voto.
O combate é, porém, desigual. Muitíssimo desigual. E, sendo o eleitorado sempre mais opaco do que as sondagens que supostamente o desnudam, teremos que esperar muito até alcançar qual o prato da balança vencedor: o da recusa taxativa do que “está” ou a continuada vitória dos “instalados”? De um lado, há aqueles que talvez tenham achado esquisito ouvir o ainda primeiro-ministro falar-lhes naturalmente – convictamente, até, quem sabe? – de “tranquilidade”: qual? Há os que não encontram nem sequer a sombra da “tranquilidade” quando batem com o nariz na porta de uma urgência ou precisam de um calendário para saber de que hospital público não serão expulsos; aqueles que não simpatizam por aí além com a “tranquilidade” de uma burocracia sempre vencedora que os impede há mais de quatro, cinco, dez anos anos, de concretizar um projecto, um licenciamento, uma iniciativa, a mera construção uma casa; aqueles cuja in “tranquilidade” pode ser dolorosa ao ver os filhos partir para melhor vida over seas, ou nas fronteiras europeias, como nos anos quarenta ou cinquenta do século passado; ou talvez aqueles que, confrontando-se com os actuais maus resultados escolares da sua prole, não esquecem que os filhos não tiveram direito nem a todas as aulas, nem a todos os professores, nem à qualidade educativa que a escola pública tem o dever de prover; que tentam acudir aos filhos e netos na inglória e impiedosa procura de uma casa ou de algo que dê por esse nome, após oito anos de governação socialista. Etc.
“Recuperámos a tranquilidade no dia-a-dia das famílias”, disse António Costa neste Natal e eu pergunto: quantas famílias portuguesas com cada vez menos dinheiro ao fim do mês, acharam isto afrontoso? Não sei. Em contrapartida, sei o poder da “instalação”. Um veneno. Letal. Os portugueses, não sei quantos mas parecem-me muitos, estão tão instalados neste (não) dolce fareniente que já leva mais de oito anos que não querem que os macem. O Estado vela por eles e eles sabem. Não são infelizes, não exigem, não se envergonham, não sonham com mais. Vão vivendo. Sem ambição digna de nota e com uma tão persistente capacidade de, como dizer?, adaptação, alheamento, adormecimento face ao que está, qualquer alteração climática política interrompe-lhes a beatitude da letargia. Adormecimento-empobrecimento.
2 Claro que neste desconforme cenário cabe a Luís Montenegro a parte de leão. Será o protagonista de uma história que chegou cedo de mais, sem pré-aviso e indesejada por todos, absolutamente todos. Protagonista, sim: se houver mudança, tarefa ciclópica será a sua. Se rondarem os ventos e as vontades, será devido à sua capacidade de liderança, se for convicto e decisivamente reformador, merece a autoria de um novo ciclo. Se for fiável, merecerá o maior número de votos. Falta, claro está, a prova maior – a governação – mas até lá terá havido, se houver, muito mais de meio caminho andado. Não estou certa do êxito da empreitada, estou apenas inteiramente segura da sua indispensabilidade, o que não é nada o mesmo.
Não vale a pena disfarçar que o PSD já conheceu melhores dias e outras equipas; que não tem os líderes e os decisores que já teve (nenhum partido tem, já repararam?). Sucede porém que nesse grande espaço do centro e da direita o PSD permanece o único. O único que pode mudar, pode levar gente consigo, pode ser confiável, o único enfim que pode liderar. E como tal – e por ser “o” verdadeiramente adversário em pista de que valerá a pena fazer caso – irá ser alvo de manipulação grosseira, intriga e mentira: a máquina non stop de propaganda do PS é capaz de tudo (e o PS também). Mas isto ainda é a política ou o (duvidoso) método eleito para fazer política: a cada um a sua escolha de a enobrecer ou ou conspurcar. Também não vale a pena repetir pela enésima vez que o país pode temer mais que confiar em Pedro Nuno Santos. Repentino, incerto, impetuoso, confunde tudo isso com ser um “fazedor” (?). Convenhamos que será fazer de nós totalmente imbecis convencer- nos que teve êxito como responsável-mor pela inconcebível saga da TAP, a tragédia da habitação, a vergonha da ferrovia. Ou seja, alarma mais do que convence.
3 Na forma com olho para as coisas – estas, tão essenciais como um país ser capaz de se convencer a si mesmo a mudar – o meu pessimismo reside porém muito mais na enorme dificuldade do combate contra a tão assente “instalação” no Estado, na resignada continuação do que está, no “assim-como-assim”. Numa palavra, reside na dúvida de Portugal e os portugueses serem capazes de responder e corresponder a um grande repto. Definitivo, diria. Mas esta é uma das cruciais grandes incógnitas de 2024 num país a empobrecer e num mundo com guerra em todas suas frentes.
Há quantas décadas não provávamos passas tão amargas à porta do novo ano?