É interpretação corrente de que as eleições legislativas deste ano serão, tal como as europeias, eleições sobre o futuro da democracia. O consenso em torno desta ideia não oferece disputa, uma vez que poderemos enfrentar, no caso português, uma fragmentação parlamentar com um pendor particular para a direita, com o possível crescimento esteróide do Chega. Similar situação ocorre com as europeias, dado que é prática comum que os eleitores utilizem esse ato eleitoral como sinalização de descontentamento interno, ao invés de o interpretar como uma eleição de superior importância, tendo em conta que no sistema político que vivemos o centralismo no plano europeu verte sobre as políticas nacionais.
É, pois, correto, dizermos que o futuro da democracia se joga em 2024. No entanto, onde há um dissenso entre um olhar científico sobre a política e o olhar mediático e político-social sobre a mesma, é no referente ao tipo de embate em questão. Sob o primeiro olhar estende-se o horizonte de que as eleições legislativas portuguesas (é nesse quadro de análise que me pretendo ater) irão determinar o tamanho das “forças antidemocráticas no parlamento”. Ora, se esta expressão já foi usada para descrever o Partido Comunista Português e até o Bloco de Esquerda, compreendemos que se trata de uma interpretação abusiva e datada da realidade política. Observando a trajetória do PCP e do BE compreende-se que nenhum dos partidos tem uma vocação antidemocrática, embora possuam programas ideológico-programáticos voltados para transformações profundas e radicais da sociedade. A prática política destes partidos impede que sejam tomados como forças não-democráticas ou antidemocráticas. Tratam-se, diversamente, de partidos de Esquerda radical, voltados a noções menos consensualistas da vida política. Enquanto o PCP almeja um “amanhã cantante” de abolição das classes sociais e uma reorganização centralizadora da vida económica do país, o BE tem-se notabilizado por uma ação política voltada à ação identitária no plano social. Todavia, ambos partilham um pendor populista classista e “para cima”, i.e., voltado ao combate às elites económicas. Ainda assim, são partidos que atuam no arco da democracia.
Por outro lado, o termo “forças antidemocráticas” vem sendo utilizado, de forma mais evidente e recorrente, para se referir ao Chega. É comum a condenação de que o partido de André Ventura elegeu 12 (deputados) fascistas, racistas, misóginos e homofóbicos. Se no plano do combate político é compreensível o recurso a chavões que permitam um acantonamento de forças de oposição, a verdade é que no plano do rigor científico e da análise crítica dos factos políticos nacionais, não é rigoroso encapsular o partido dessa forma. Isto porque os diferentes deputados apresentam diferentes leituras da sociedade e da política nacional, ao ponto de podermos dizer que entre os 12 deputados do Chega existem diferentes agendas políticas. Bastará destacar a agenda de “guerras culturais” de Rita Matias, centrada na promoção de valores conservadores através de uma ação política populista, ou a agenda no plano da ética e do combate ideológico de Gabriel Mithá Ribeiro, com enfoque num combate de inspiração trumpista contra o marxismo cultural e o que chama de vitimização de inspiração soviética que considera dominar o discurso sobre as relações raciais.
Ora, tal como o BE e o PCP, o Chega apresenta uma ação política dentro do arco da democracia, através de um enfoque populista de direita radical, “para cima”, ou seja, contra as elites que homogeneíza como corruptas, porém igualmente “para baixo”, i.e., (i) para as classes sociais mais baixas, através do combate à “subsidiodependência”, e (ii) para os imigrantes, através da adoção da teoria da grande substituição, facto que o coloca no espetro da xenofobia e do racismo.
No entanto, se não é rigoroso considerar o Chega como um partido antidemocrático, não é igualmente rigoroso estabelecer um paralelismo entre este e o BE e o PCP. Isto porque, não obstante ambos apresentarem agendas radicais e transformadoras e um modus operandi de vocação populista “para cima”, mais nenhum posicionamento político, no plano interno, indica uma vocação antidemocrática. Se é verdade que, tanto o BE, o PCP e o Chega encontram um ponto de convergência que é um dos pontos nodais do populismo: a divisão social em “nós” e “eles”, não é menos evidente que as parecenças terminam aí.
Assim, respeitando a exiguidade do espaço, é tempo de desvelar o conceito mais adequado para compreender o Chega: partido iliberal. É verdade que, mais uma vez, o PCP e o BE não são partidos liberais na sua total aceção. No entanto, a noção de liberalismo não se pode ater apenas às questões económicas, onde, diversamente, o Chega encontra forte expressão. É, pois, no plano das liberdades civis, dos direitos políticos e da posição face à separação de poderes que melhor se entende o iliberalismo. Um partido, movimento ou regime é iliberal quando (i) considera que as liberdades individuais estão sujeitas ao escrutínio público da maioria, (ii) os direitos políticos das minorias e estrangeiros podem ser comprimidos para interesse da maioria (a “nação”), (iii) a separação de poderes, a independência dos sistemas legislativo, judicial e executivo pode ser derrubada se isso for favorável aos interesses da maioria. E o iliberalismo é, contudo, democrático, no sentido em que julga manifestar diretamente a vontade popular (a “voz do povo”), sem intermédios, sem burocracias, sem concessão às elites ou às minorias. É a vontade pura, direta e incontrolavelmente jorrante da maioria, mesmo que para isso seja necessário comprimir ou suprimir direitos, violar a separação de poderes e derrogar ou esvaziar o sistema representativo (p. ex., reduzir o número de deputados e concentrar o poder na figura presidencial). E isto não é antidemocrático, é antidemocracia liberal, o que é significativamente diferente.