Deslumbrada com os avanços da ciência e da técnica, a civilização dos nossos dias vê-se na confortável circunstância de poder dispensar a religião e o transcendental da sua mundivisão. Considera-se que toda a realidade pode ser explicada de forma racional e lógica e o comportamento humano interpretado exclusivamente sob um prisma biológico e mecanicista. As dimensões espiritual e simbólica são entendidas como reminiscências bafientas do passado. Existe aparentemente um caminho único de progresso, de construção de um homem novo e de aperfeiçoamento máximo da sociedade. Toda a vida é tida como terrena e, por isso, os receios de um julgamento divino ou a expectativa da salvação da alma perante a morte são conceitos desvalorizados ou mesmo rejeitados.

Acredita-se que a tecnologia e o conhecimento científico são hoje de tal forma desenvolvidos que, havendo vontade e mobilização social suficiente para tal, existe capacidade para evitar a doença e o sofrimento humanos. Omnisciente e com poderes ilimitados, o homem pode controlar o meio-ambiente e precaver-se contra todas as adversidades.

Neste contexto exacerbam-se as tendências narcísicas e egoístas das pessoas que passam a ver-se como titulares de infindáveis direitos adquiridos e justos credores de tudo aquilo que a ciência possibilita.

Com Deus esquecido, o homem torna-se a medida de todas as coisas, os valores morais e as referências éticas não se encontram no dever sagrado, mas na falácia utilitarista ou na pouca virtude das celebridades, os comportamentos sociais infantilizam-se. As populações procuram uma imediata e constante aprovação e reconhecimento em vida. Não se aguardam penas no Purgatório e, por isso, existe a necessidade de regulamentar e definir em letra de lei todos os aspectos da vida, assim como o modo segundo o qual as pessoas devem interagir socialmente para participarem no mundo perfeito que idealizam. O Estado e a burocracia encarregam-se de fornecer as directrizes bem como os modelos de comportamento que os povos anseiam mimetizar, tudo numa lógica computorizada, infalível.

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Mas nesta narrativa, o paraíso terreno só será alcançável se todos seguirem a ciência, as orientações das autoridades e os conselhos dos especialistas. Porém, com uma vida cada vez mais digitalizada, robotizada, automatizada; com a proliferação do teletrabalho, a comunicação à distância e o acesso a entretenimento e informação online, assistimos hoje a níveis de isolamento social, solidão e depressão cada vez mais elevados. Consequentemente grassam os sentimentos de medo e insegurança nas relações entre as pessoas e é ubíqua a falta de empatia humana. A desconfiança em relação aos outros é uma constante. Os níveis de ansiedade, frustração e alarmismo social são estratosféricos. Qualquer problema, risco ou incerteza é vista com uma ameaça existencial, uma crise turbulenta, uma grave emergência.

Paradoxalmente, são essas fontes de medo e motivos de ansiedade que aproximam e unem espontaneamente as populações numa fanática defesa do que a sua racionalíssima ciência determina ser o interesse comum. Esta espécie de dogma de fé na ciência e na sua objectividade, transforma subitamente uma sociedade atomizada e individualista numa massa colectiva homogénea radicalmente irracional, blindada por um novo vínculo social de solidariedade e missão cívica.

Estes tempos de utopia racionalista são retratados de forma desenvolvida pelo psicólogo belga Mattias Desmet no seu mais recente livro, traduzido recentemente para inglês, e cujo título na nossa língua seria “A Psicologia do Totalitarismo”. Desmet explica que vem observando e analisando há bastante tempo um crescente resvalar para uma sociedade artificial liderada por tecnocratas e uma submissão voluntária das pessoas ao colectivo, em prejuízo das suas mais elementares liberdades individuais. Mas foi o sucumbir generalizado do mundo a uma hipnose neurótica com o vírus da covid19 e a aceitação pela esmagadora maioria das populações da parafernália de ferramentas e decisões opressivas e totalitárias dos governos que o levou a escrever a referida obra.

Com referências várias a Hannah Arendt e, diria, inspirado também pelo pensamento de Aldous Huxley, constrói e explica o conceito de «formatação de massas» (mass formation) descrevendo os pressupostos, o caminho e as dinâmicas da deriva totalitária e da ascensão ao poder de uma cultura de ansiedade intolerante, de vigilância e de histeria a pretexto do terrorismo, das alterações climáticas e, claro, da covid19.

Desmet refere que a «formatação de massas» é uma degeneração do Iluminismo e “uma consequência lógica do pensamento mecanicista e na confiança da omnipotência da racionalidade humana”. O conceito é definido como uma espécie de hipnose colectiva em que as pessoas perdem a distinção entre o verdadeiro e o falso e aderem a uma “crença ideológica que justifica o engano e a manipulação e, em última análise, transgride todos os limites éticos”.

O que gera comportamentos compulsivos das massas são histórias veiculadas pelos media que indicam e maximizam um objeto de ansiedade, seja o clima, o terrorismo ou um vírus respiratório. Haverá um amplo apoio social para a implementação de uma estratégia de controlo desses objetos de ansiedade e, acrescenta o autor, que “através de uma luta comum com esse inimigo, a sociedade em desintegração recupera a sua coerência, energia e significado inicial”. Desta forma, as massas passam a aceitar até as ideias mais absurdas como verdadeiras, ou, pelo menos, a agir como se fossem verdadeiras. Desmet retira daqui que “o que se pensa não importa; o que importa é que as pessoas pensem juntas.”

Vimos isso em Portugal mais claramente desde Março de 2020 quando o argumento principal para a população cumprir o disparatado ritual das «regras sanitárias» da DGS e os desmandos das imposições do governo foi o apelo à “responsabilidade cívica” de todos. Quem se recusava a apalhaçados e contraproducentes comportamentos era acusado de «negacionista», «egoísta» ou até «assassino», qualificativos que conferiam a objectificação necessária de um inimigo contra o qual a sociedade voluntariamente se mobilizou em massa, tendo como duplo efeito gerar união numa “causa” e sinalizar uma fictícia virtude.

Mas os capítulos 7 e 8 do livro de Mattias Desmet são dos mais interessantes porquanto neles o autor desmistifica as teorias conspirativas de que um pequeno grupo de líderes programou em pormenor e de forma sádica todos os acontecimentos que vivemos nos últimos dois anos. Em simultâneo, demonstra que quem conjectura grandes orquestrações malévolas internacionalistas cai nas mesmas falácias daqueles que acriticamente seguem tudo aquilo que quem está em posição de poder determina que se faça e pense.

Tanto a perspectiva da observância cega, como a da conjuração das elites são baseadas num idêntico mal-entendido que é o de atribuírem aos líderes uma capacidade de cálculo e conhecimentos virtualmente absolutos. Mas, como diz o autor, “o totalitarismo não é sobre pessoas monstruosas, é sobre pessoas comuns que se apegam a uma lógica ou maneira de pensar mórbida e desumanizante”.

A essência do totalitarismo não é utilitária ou egoísta, nem os líderes são imbuídos de uma ganância desmedida. O dinheiro e o poder constituem apenas meios para alcançar o objetivo final de realizar a sua ficção ideológica. É este impulso ideológico que acaba também por hipnotizar os próprios dirigentes, cujo estado alucinatório de que também padecem é retroalimentado pelas massas fanáticas que dirigem.

É natural que quem observe uma multidão unida pelos mesmos pensamentos e comportamentos fique confuso perante uma situação tão esmagadora. Esse alguém procura por isso simplificar o seu quadro mental para tentar compreender a complexidade do fenómeno. Facilmente, porém, cai na armadilha lógica da conspiração, concentrando e objectificando nos membros de uma elite toda a causalidade do mal. O pensamento conspiratório acaba por cumprir a mesma função que a formatação de massas, que tudo explica por meio de um quadro de referência simples e afunilado, dando ao mundo uma aparência lógica e inteligível.

Todavia, ao contrário do que é habitual dizer-se, os líderes não comandam verdadeiramente as massas. Ao invés, actuam de forma táctica e oportunista, ajustando os seus planos àquilo que sentem ser o desejo das pessoas comuns. Desmet cita Arendt para dar força ao seu argumento, lembrando o que a filósofa alemã de origem judaica já havia dito no passado: “o líder totalitário é nada mais nada menos do que um funcionário das massas que lidera. Não é um indivíduo sedento de poder impondo uma vontade tirânica e arbitrária sobre os seus súbditos. Sendo um mero funcionário, ele pode ser substituído a qualquer momento e depende tanto das massas que encarna quanto as massas que dele dependem.

Mas como se quebra o círculo vicioso de ideologias que tomam posse de todos e não pertencem a ninguém em particular? Desmet não apresenta soluções claras ressalvando, no entanto, que a primeira e mais importante tarefa é a de dar continuidade a um discurso de dissidência que se quer autêntico e honesto. Impõe-se também ter a consciência de que quem, ao abrigo do anonimato das massas, comete crimes e atentados contra a liberdade individual não está isento de culpa pelas suas compulsões descontroladas.

Enquanto sociedade podemos fugir das ansiedades e negar a incerteza do mundo em que vivemos. Mas desafiar a nossa ansiedade narcisista e aceitar a incerteza que nos rodeia talvez seja o primeiro passo a dar para a Liberdade.

E, quiçá, também a humildade de Max Planck nos inspire a reflectir sobre estes tempos quando afirmou: “tanto a religião como a ciência exigem uma crença em Deus. Para os crentes, Deus é o princípio de todas as coisas, e para os cientistas Ele está no fim de todas as considerações.

Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.