Poderia ser mais um Enfermeiro a falar sobre a eutanásia, sobre o coronavirus ou sobre a criação de mais um Sindicato “Independente” na nossa profissão mas não… desta vez opto por falar de algumas questões estruturais que me preocupam na profissão (pelo perigo para os utentes que delas advém) enquanto Enfermeiro e que a meu ver carecem de resolução em ambiente micro antes de pensar num cenário macroeconómico em Portugal.

Estas questões passam por situações que estão ligadas direta ou indiretamente à Ordem dos Enfermeiros, aos sindicatos da profissão e às medidas políticas nacionais e/ou internacionais, os intervenientes, a meu ver necessários e importantes para uma melhoria da qualidade na prestação de cuidados à população.

Assim, optei por apresentar o conteúdo de forma sistemática e fundamentada essencialmente sob forma de reflexão, resultando desta forma numa fórmula mágica para um desastre anunciado no SNS.

1) As dotações seguras são cumpridas em Portugal?

Entende-se por dotação segura como ter-se o número necessário de enfermeiros com as competências e a formação adequada no posto de trabalho correto, em cada momento.

Sabe-se hoje que níveis inadequados de enfermeiros aumentam o risco dos cuidados de saúde serem afetados, do aumento de efeitos adversos, resultados clínicos inferiores, mortes hospitalares e a vivência por parte do doente de uma pobre e pouco eficiente prestação de cuidados.

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Sabe-se ainda que existindo Enfermeiros insuficientes para satisfazer as necessidades dos doentes criam-se as condições para uma carga de trabalho insustentável, com impacto no bem-estar e na saúde dos próprios profissionais.

A norma do calculo de dotações seguras foi atualizada em 2019 e publicada em Diário da Republica.

Assim, sabendo que há uma norma para cumprir, que está legislada, e que o seu não cumprimento pode levar a danos (que poderão tornar-se irreversíveis para o doente), porque não está a ser feita a sua fiscalização, mas mais importante ainda… porque não existe uma sanção ao seu não cumprimento? Existe alguma entidade oficial responsável para o fazer? Se já existe, onde estão os dados sobre o cumprimento (ou não) das dotações seguras em Portugal? Onde estão os mapas de pessoal do SNS ?

Transparência é necessária urgentemente… e na questão das dotações seguras no país é importante a criação de uma base de dados, pública, onde se possam consultar as instituições e serviços que estão em cumprimento bem como as que não o fazem. É ainda importante legislar sanção acessória ao não cumprimento das mesmas, pois coloca se claramente em risco a vida dos utentes.

O não cumprimento das dotações seguras permite como efeito secundário a contratação insuficiente de pessoal bem como a utilização indevida de horas extraordinárias! Surge assim mais um problema (este sim, documentado e estudado) que continua assim… um problema sem solução à vista!

2) Em 2018 as horas extraordinárias aumentaram 27% nos Enfermeiros

Comprova-se assim que garantidamente as dotações seguras não são cumpridas na profissão. Se fossem, existiria o número adequado de profissionais e o trabalho suplementar não teria aumentado exponencialmente. O trabalho suplementar é suportado no momento… durante um curto período de tempo, mas não por frequência, por rotina, como se tem verificado com a passagem às 35 horas semanais do pessoal com contrato individual de trabalho (e bem, a meu ver! ), em 2018. Soluções a longo prazo para a passagem a 35 horas semanais de trabalho nos Contratos Individuais de Trabalho ? Nenhumas!

Curioso o trabalho extraordinário ter aumentado a partir deste ano na profissão… tal só poderá querer dizer que além das contratações não serem suficientes para assegurar as dotações seguras, ainda se sobrecarregaram mais os Enfermeiros de modo a poderem continuar a fazer 40 horas semanais ou mais, sob regime de trabalho suplementar. Onde está a fiscalização deste trabalho? Onde estão os relatórios por instituição sobre estes gastos? Quem contrata mais e quem opta por sobrecarregar os Enfermeiros?

Isto leva-nos a mais uma questão preocupante.

3) Portugal gasta hoje menos na Saúde do que há 10 anos atrás

Fazer mais com menos é viável numa empresa de construção de automóveis, numa fábrica que trabalha com objetos inanimados, mas nunca na saúde, onde estamos a lidar com vidas humanas. Se retirarmos quantidade aos profissionais e exigirmos mais qualidade estamos a sobrecarregá-los… se exigirmos o trabalho de 3 apenas a 1 pessoa estamos a curto prazo a ter bons resultados mas a longo prazo a ter resultados desastrosos…e é o que se passa neste momento… estamos a provar o resultado de medidas sucessivas tomadas há dez anos atrás…o produto final só poderá ser desastroso uma vez que estamos a lidar com um produto final de ganhos em saúde. Trata-se de uma fórmula matemática que não é aplicável a ciências, colocando em risco claro e evidente a própria vida dos utentes. 

Os Enfermeiros estão exaustos, tornando-se incapazes de prestar cuidados com segurança e qualidade. Devido ao aumento de carga laboral proporcionada nos últimos 10 anos, quer pela contenção de custos, quer pelas reformas na função pública que não foram substituídas, quer pelo aumento exponencial de absentismo na profissão, um em cada cinco Enfermeiros diz sofrer de sintomas de depressão grave! Como é que os Enfermeiros podem cuidar, se não se encontram eles próprios bem de saúde ? Quem cuida dos Enfermeiros ?

Com este grave problema, surge outro que afeta diretamente o Cidadão na prestação de cuidados.

4) Enfermeiros têm a maior taxa de absentismo na Saúde

Com o aumento das horas de trabalho suplementar, com o incumprimento das dotações seguras, com o total desrespeito por direitos básicos, pela existência insuficiente de profissionais no serviço, atropelam-se constantemente leis importantes e básicas que constituem direitos dos trabalhadores, como a lei do direito à licença de parentalidade, horários de amamentação, horário flexível, estatuto de trabalhador estudante, direitos na marcação de férias, entre outros!

O absentismo surge assim e infelizmente como uma solução para estas questões na profissão a título individual, mas criando ainda mais problemas a título coletivo / profissional, criando-se assim as condições para as condições laborais ainda piorarem mais, como por exemplo a necessidade de “seguir turno” quando os profissionais estão escalados abaixo do estipulado como “serviços minimos”.

Mais uma vez estas soluções temporárias onde se abrem excepções em prol do bem-estar do utente e do zelo pela sua saúde transformam-se depressa em soluções definitivas e regras laborais que prejudicam o trabalhador!

Assim, e como que de forma cíclica com tudo o referido anteriormente, cria-se novamente o aumento do desgaste fisico, emocional e stress, colocando em risco a vida do utente 

Finalmente, e a título quase conclusivo, deixo mais uma nota que julgo resumir tudo o que foi falado anteriormente.

5) Em 2020 os hospitais voltam a não poder contratar sem autorização da tutela

É urgente reduzir custos com horas extraordinárias mas mais importante que isso é deixar de fazê-las e ter dotações adequadas à segurança do doente em Portugal.

Existe claramente uma vontade do governo em manter as dotações inseguras colocando em risco a vida de todos os utentes, forçando os Enfermeiros a trabalhar mais e claramente sob condições penosas levando ainda ao aumento do absentismo na profissão.

Já alguém se deu ao trabalho de calcular o valor gasto em horas extraordinárias anualmente e compreender quantos salários a Enfermeiros poderiam sustentar, traduzindo-se em números aumentados de mapa de pessoal e consequente aumento de qualidade na prestação de cuidados?

NÃO… e também não interessa, pois neste momento estamos perante um Governo que prefere o recurso a utilização de horas extraordinárias nos Enfermeiros e Assistentes Operacionais, e o recurso a outsoursing de empresas de tarefeiros (no caso médico) pagando a peso de ouro os serviços realizados por estes em detrimento da contratação dos outros profissionais que se encontram em franco defeito nas instituições!

Assim é fácil gerir um orçamento de Estado no que diz respeito a recursos humanos na Saúde e apresentar malabarismos fantásticos que apontam para um investimento regrado no SNS.

Em síntese, preocupa-me sinceramente para onde caminhamos há mais de 10 anos no SNS, pois a meu ver começamos a observar lentamente os resultados das políticas de contenção utilizadas a curto prazo que não foram pensadas a longo prazo.

Reduziram-se profissionais na gestão de recursos humanos, criou-se uma política de incentivo ao trabalho extraordinário, cansaram-se extremamente os Enfermeiros nos últimos 10 anos, maltrataram-se estes profissionais atropelando os seus Direitos, e estes nunca baixaram os braços em prol do utente, mas o cansaço acusa… a probabilidade de erro clínico aumenta, o absentismo nunca foi tão alto e as doenças mentais nunca estiveram tão documentadas na profissão… não se pensou nunca no que aconteceria em cenário de crise humanitária (e atenção… estamos perante uma crise humanitária inerente, com o cenário pandémico de Coronavirus) e portanto, em pleno século XXI parece-me que o SNS não está preparado para a queda dos Enfermeiros em Portugal.

É a qualidade dos cuidados que nunca esteve tão prejudicada como hoje em dia e neste momento, a meu ver, não é uma questão de SE, mas sim de QUANDO os enfermeiros irão desmoronar:

  • As dotações seguras não são cumpridas;
  • O trabalho suplementar aumentou exponencialmente na profissão;
  • Gasta-se menos hoje na Saúde do que há 10 anos atrás;
  • O absentismo nunca esteve tão alto na profissão;
  • As contratações de profissionais estão novamente condicionadas à autorização da tutela

Esta é a fórmula mágica para um desastre no SNS em pleno Século XXI. Este é o verdadeiro coronavirus silencioso para o utente do SNS.