Estamos num mês especial para muitos, onde se está em família, se convive, se janta a 24 e se almoça a 25 de Dezembro e se festeja a passagem para um novo ano ao dia 31 à noite. Mais uma vez vem aí o Natal e o Ano Novo, duas épocas festivas intensas onde as palavra amor, carinho e convívio fazem todo o sentido.

Este não é claramente o caso dos Profissionais de Saúde, que, na maior parte das vezes, vêem-se obrigados a abdicar da sua família para poderem cuidar/tratar das famílias dos outros. É uma verdade, alguém o tem que fazer. Também é uma verdade absoluta, os doentes não têm culpa de assim se encontrarem e são claramente a última pessoa a quem atribuir culpas pelas condições que se sucedem estas épocas, ou nomeadamente alguns fenómenos que têm tendência a acontecer nesta altura!

Se fizermos uma pequena pesquisa e nos remetemos por exemplo aos últimos 10 anos, depressa percebemos que é recorrente no mês de Dezembro encontrar-se nas manchetes das notícias que é existente o caos nas urgências, com especial ênfase nas grandes áreas metropolitanas. O que se sucede? Porque é que existe este padrão anual declarado constantemente como elevada procura aos serviços de urgência e não se analisa outras variáveis, como, por exemplo, os recursos humanos disponibilizados, em especial durante todo o ano, e em particular nesta época?

O paradigma é complexo e mexe com várias situações tabu, mas poderíamos começar por explorar o porquê de, num mesmo serviço do SNS, um trabalhador pago por uma empresa a recibos verdes receber um valor muito mais elevado, e, como tal, um ordenado muito superior aos colegas do lado. Poderíamos ainda inferir que pelo simples facto de se tratar de prestação de serviços, a recibos verdes, por disponibilidades, quando chega esta altura do ano em que todos gostamos de estar em família, esses mesmos profissionais que não detém qualquer vínculo obrigatório com a instituição onde estão a ser pagos a peso de ouro (ou talvez pelo preço que todos deveriam efetivamente estar a trabalhar) não estão disponíveis para preencher o horário, pois regra geral aproveitam e tiram “férias” nestes períodos.

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Este deslocamento gera sempre escalas com profissionais abaixo do número supostamente definido como mínimo, resultando num atendimento muito mais demorado nos serviços de urgência. Deveria também analisar-se o porquê de a atividade cirúrgica diminuir exponencialmente nestas épocas especiais. Seria interessante perceber o porquê de haver menos marcações de tempos operatórios. A contratação de profissionais a recibos verdes é claramente um evento adverso instaurado no SNS há muito tempo, mas é também justificada pelo simples facto de não haver medidas de incentivo de fixação dos profissionais nas instituições.

Outro fenómeno interessante existente ao nível dos serviços de urgência são os chamados episódios falsos ou não justificáveis: cada vez mais se observam pulseiras verdes e azuis a recorrer ao serviço de urgência, quando deveriam as mesmas ser observadas e tratadas nos centros de saúde.

Aqui começa a pequena bola de neve continental. Como se pode solicitar observação e tratamento nos centros de saúde se os mesmos não possuem meios complementares de diagnóstico adequados?

Podem-se inferir várias coisas e, como tal, desenvolver mecanismos de ação de forma a corrigir estes problemas. Um deles, a meu ver, prende-se com o facto de em Portugal continental a linha 112 ser feita por técnicos e não por enfermeiros.

A Triagem de Manchester é o sistema de triagem utilizado em todos os hospitais portugueses, que nos permite atribuir uma cor que vai definir o tempo máximo de atendimento, e é realizada exclusivamente por enfermeiros. A Triagem de Manchester Telefónica é o sistema de triagem adequado para a linha 112, tendo já resultados práticos na ilha dos Açores desde 2013, sendo que este projeto tem inclusivamente validade científica e prémios europeus reconhecidos. Tal como a Triagem de Manchester Presencial, também a telefónica é assegurada por enfermeiros, sendo atribuídas também cores, mas não definindo a prioridade no atendimento, mas sim a prioridade no envio de meios.

Em Portugal Continental é claramente esta ponte que faz falta – a utilização do algoritmo da Triagem de Manchester Telefónica por enfermeiros, com capacidade crítica, de avaliação e conhecimento científico, ao invés da utilização de algoritmos onde a capacidade de raciocínio não é necessária, aplicando fórmulas e perguntas de sim ou não.

Com esta capacidade crítica e científica, poderão as situações ser identificadas mais precocemente, e o envio de meios, em vez de ser realizado quase na totalidade para o meio hospitalar, poderá e deverá começar a ser feito também para os cuidados de saúde primários. Voltemos aos cuidados de saúde primários… outro problema em Portugal Continental. Não existem serviços de atendimento permanente, disponíveis 24 horas. A grande maioria fecha as 20h00, quando não antes, acabando tudo por ser canalizado para o serviço de urgência.

Mas estes serviços encontram-se fechados porque não dispõem de um simples sistema de eletrocardiografia, ou de máquina de gasimetria, raio x ou tac. Não se compreende também porque é que os cuidados de saúde primários não têm capacidade de internamento temporário.

Há claramente uma necessidade de reestrututração do SNS em Portugal Continental, passando pelo reforço de várias medidas a vários níveis.

Se fosse político ou gestor, ou se me perguntassem como resolveria problemas com mais de 20 anos em Portugal Continental… responderia o seguinte:

  • terminar com a prestação de serviços no SNS (recibos verdes) apostando na valorização dos profissionais de saúde e motivação de forma a fixar os mesmos nas instituições;

  • criação de políticas de incentivo a fixação regional;

  • reestruturação da linha 112 com introdução de Triagem de Manchester Telefónica, de forma localizada por áreas metropolitanas e de acordo com a demografia regional, em articulação com os hospitais de referência e cuidados de saúde primários;

  • dotação de meios complementares de diagnóstico e terapêutica nos cuidados de saúde primários;

  • dotação de capacidade de regime de internamento nos cuidados de saúde primários;

  • valorização e investimento maior nas unidades de hospitalização domiciliária;

  • criação de protocolos temporários de cooperação com unidades privadas até estabilização da dotação de MCDT e internamento nos cuidados de saúde primários

Este é claramente o caminho necessário para o retorno de um SNS robusto, capaz de resposta, para que claramente em todos os invernos ou em todos os períodos festivos não se ouça falar em demissões de funções de chefes de equipa, médicos, ou de centenas de macas acumuladas nos serviços de urgência com doentes em condições para lá de precárias.