Nós por cá, Portugueses de gema, teimamos em afirmar que somos um povo magnífico. Talvez até tenhamos sido em várias ocasiões. Gostamos de admirar D. Afonso Henriques, Camões, Sá Carneiro e tantos outros como símbolos de superação, patriotismo e resiliência. Mas a verdade, e por muito que nos custe, é que nós, Portugueses subordinados ao Grande Estado, nunca fomos, e nunca seremos, um povo que bate o pé aos autoritarismos e às hipocrisias de quem nos governa. A história relembra-nos isso.
Uma das retóricas que se gosta de impingir, é que o povo português, com todas as suas virtudes e defeitos, sempre foi um povo que se insurgiu contra aqueles que, de um forma ou outra, conduziam o país à ruína. Lamento, e lamento mesmo, informar que essa mensagem não é mais que uma invencionice, elevada, muitas vezes, a mito.
Um dos exemplos disso é o 1º de dezembro de 1640. Lembro-me bem, até porque para felicidade minha não foi há muito tempo, que este acontecimento histórico é lecionado nas escolas portuguesas de uma forma romantizada, levando os estudantes a imaginar que foi o povo o grande sustentáculo da restauração da independência. Gosta-se de pregar que a revolução contra a governação castelhana foi um movimento protagonizado pelo povo que, fatigado e descontente, saiu à rua, acompanhado por um conjunto de nobres, e depôs Filipe III de monarca. Permita-me o leitor, mais uma vez, lamentar, pois nada disto é verdade. O que aconteceu, pura e simplesmente, foi que, a dada altura, a nobreza portuguesa se viu obrigada a ir lutar para Flandres, uma guerra que acreditava não ser sua. Até àquele momento, a nobreza portuguesa não vira razão alguma para uma “revolução”. Aproveitando uma rebelião na Catalunha, conhecida como a Guerra dos Segadores, os nobres portugueses viram uma oportunidade para restaurar a independência, fugindo, dessa forma, à convocatória castelhana para se deslocarem até Flandres. É claro que existem outras considerações e fatores importantes. Mas, no fundo, o que é fundamental reter é que o que despoletou o movimento foi o descontentamento dos “40 Conjurados” – número fictício e simbólico – contra as políticas de guerra. O povo, descontente, pobre e reprimido, limitou-se a gritar “vivas” ao novo Rei. No dia seguinte, o sol nasceu às 07:40 da manhã e foi tudo trabalhar outra vez.
A revolução do 25 de Abril de 1974 é estranhamente semelhante ao ocorrido em 1640. Também naqueles tempos, um grupo de militares, descontentes com o decorrer da guerra colonial e contra as políticas de promoção na hierarquia militar, iniciou uma revolução contra o regime do Estado Novo. Da mesma forma que os “40 Conjurados” aproveitaram uma crise militar como pretexto de insurreição, também os capitães de abril o fizeram. Marcello Caetano estava frágil, desgastado e sem aliados. Os sinais de que o regime estava em decadência eram notórios – demissão de Costa Gomes e Spínola – e, por isso, os capitães e os oficiais subalternos aproveitaram a oportunidade. A população, à semelhança do que aconteceu no dia 1 de dezembro de 1640, limitou-se a sair à rua. O povo, descontente, pobre e reprimido, limitou-se a gritar “vivas” ao novo regime. Não se juntou à revolução: juntou-se antes à festa que decorria pelas ruas de Lisboa. No dia seguinte, o sol nasceu às 07:40 da manhã e foi tudo trabalhar novamente.
Estes dois exemplos personificam aquilo que é ser português. Tal frase acredito que não seja fácil de digerir. Confesso que me chateia escrevê-la. Temo, ainda assim, que corresponda totalmente à verdade. Hoje, no ano de 2021, temos, como certamente o leitor já reparou, andado a viver num Estado rígido, (relativamente) autoritário e sem respeito pelos seus cidadãos. Nos últimos dias, um estrangeiro gozou de mais direitos em Portugal do que um cidadão nacional: pôde-se deslocar como quis, para onde quis, quando quis. Nós por cá, Portugueses de gema, éramos multados se atravessássemos o nosso concelho vizinho. Livremo-nos de comer gomas na rua, não vá acontecer o pior e sermos multados pela GNR. Comer uma sanduíche no carro, isolado, sem pôr em causa a saúde de ninguém? Bem, já sabemos que a multa é de 200 euros.
Nos Países Baixos, o povo manifestou-se contra as políticas sufocantes do governo. Na Alemanha, a chanceler Angela Merkel voltou atrás na decisão de “cancelar” a Páscoa, após a forte contestação popular. Por estes lados, alguma da comunicação social, o “ministério da propaganda” do atual Governo, diz-nos, dia após dia, que nos devemos portar bem e seguir à risca aquilo que nos é imposto. Quem discute as medidas do Governo, é negacionista; quem se questiona, é irresponsável; e, por último, quem levanta a voz, é arrasado pela classe “intelectual”.
Nós, por cá, os Portugueses de gema, não nos revoltamos. Estamos sempre à espera que alguma coisa aconteça. E quando acontecer, digam-me, porque aí, sou o primeiro a sair de casa.
Para dar “vivas”, claro.