Texto originalmente publicado pelo portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ.
Há alturas em que se faz história no decurso da nossa humanidade. Não sei se de forma voluntária ou não, mas o que é facto é que há momentos que sabemos serem para sempre inolvidáveis e que se irão eternizar, ainda na tenra experiência e adrenalina própria da ocasião que estamos a presenciar.
Estou convicto pois, que no fim-de-semana passado estivémos perante um destes momentos, que marca uma jornada incrível do primeiro Papa da história a pisar o berço da civilização, e que prometeu levar o Iraque no coração.
A viagem é tão cheia e mágica, quanto difícil de reproduzir.
Sob o magno auspício de um lema ambicioso “somos todos irmãos” e que por vezes mais parece uma miragem no horizonte humano, a concretização deste antigo sonho esteve repleta de dúvidas e incertezas e, porque não dizê-lo, críticas, considerando a terrível enfermidade da Covid-19 e porventura o momento inoportuno escolhido por Deus para a referida visita.
Mas se não agora, quando? Francisco encheu-se de coragem e mesmo correndo riscos que alguns entenderiam como excessivos, mostrou que os atos devem superar as palavras e em plena pandemia, rumou à planície de Ur, outrora morada de Abraão, patriarca de judeus, cristãos e muçulmanos.
Num apelo incrível ao perdão, a viagem é carregada de simbolismos, tais como o roteiro e os encontros, e de um júbilo notável, como constatam os cânticos, flores dos cristãos mas não só – também dos muçulmanos xiitas e sunitas, e dos yazidis.
O Papa Francisco trazia na bagagem mensagens muito fortes, sobre temas quentes como as mulheres a quem aplaude pelo facto de continuarem a dar vida não obstante os abusos e as feridas ainda abertas, o dinheiro que para o mundo vale quem tem, mas para Deus é diferente, e a negação e o combate ao estado islâmico, indo à sua base – Mossul – e oferecendo a forma de superá-lo através do perdão, e evitando a vingança.
Houve ainda lugar para três encontros de não menos importância:
- i) com o ayatollah Al Sistani – que apesar da enorme influência e respeito, é um líder ascético que leva uma vida simples e pobre e raramente sai de casa, não aparece em público, nem faz discursos.
- ii) com o pai de Aylan Kurdi – o jovem que se tornou no símbolo da crise dos refugiados – a quem o Papa expressou a sua solidariedade;
iii) com Doha Sabah Abdallah, uma mulher cristã da cidade de Qaraqosh que comoveu o papa ao anunciar que havia perdoado os assassinos do seu filho;
“Como é cruel que este país, berço de civilizações, tenha sido atingido por uma tempestade tão desumana” refere o papa, lamentando a trágica diminuição de cristãos no Iraque, que representou um “dano incalculável”.
Dei por mim a pensar que esta viagem se torna um marco precisamente para que esta história de terror não se volte a repetir. Nem aqui, nem em lugar nenhum do mundo.
E daí o impacto brutal de algumas atitudes que pretendem repor a justiça – tais como a devolução de Sidra (nota 1), ou o reconhecimento da festa de natal como feriado nacional – pretendem, notem – pois repô-la na totalidade somente cabe a Deus.
Continuando a passar das palavras aos atos, e para os mais pessimistas, nos quais não se inclui o autor do presente texto, é imperativo assinalar que a visita pôde ser acompanhada pela televisão oficial iraquiana – e quem diria ser possível esta visita há dois anos?
É pois, com justificada alegria, que presenciei, juntamente com um amigo e irmão católico – o Pedro Gil – aquilo que classifico como um notável partipris para que esta visita fosse possível: a declaração de Abu Dhabi. Aquela, de há dois, anos, mais institucional, pomposa e altiva – embelezada por um país com uma história recente e isenta de violações dos direitos humanos e da liberdade religiosa; esta, mais simples e modesta, em bruto e com os resquícios de um país delapidado pela guerra e por lutas fratricidas.
Diz-nos o papa que “a fraternidade é mais forte que o fratricídio, que a esperança é mais forte que a morte, que a paz é mais forte que a guerra”.
Para mim, como muçulmano, houve coisas que me alegraram e encheram o coração: o respeito que já sabia existir por parte dos muçulmanos pelo papa cuja simplicidade, bondade e abertura ao diálogo pude comprovar quando tive a honra de o cumprimentar em 2018.
Houve até um irmão sunita iraquiano que lançou a prece, certamente augurado de um bom presságio “queremos que a paz desça sobre nós com a sua vinda” – julgo que este é um dos méritos obtidos pelo longo caminho percorrido pelo magistério do papa Francisco.
Diz o sábio povo que uma imagem vale mais do que mil palavras. Apreciei especialmente ver a bandeira do Iraque – tendo no seu epicentro a inscrição em árabe kufic (nota 2) do takbir (nota 3), cuja expressão é um dos reflexos máximos da nossa crença em Deus – ao lado da da Santa Sé. Sentimento semelhante senti nos Emirados, mas agora com particular calor.
As imagens desta viagem são violentas, seja no sentido positivo ou negativo.
Desde a chegada do Sumo Pontífice a solo iraquiano em pleno deserto, às flores dadas pelos meninos trajados a rigor, passando pelo papa a rezar no meio dos escombros; mas aquela que é indubitavelmente a mais marcante é o reflexo da barbárie humana: a da virgem Maria sem mãos.
Que Maria, mãe de Jesus, um sinal dado por Deus ao universo, se torne um exemplo de fé e religiosidade para todos nós.
Notas:
- Sidra é o livro sagrado da liturgia, do século XIV-XV, da cidade santa para os cristãos iraquianos da Planície de Nínive. O Papa devolveu no Iraque este livro histórico da comunidade cristã local que escapou ao Estado Islâmico e foi restaurado em Roma.
- A escrita kufic é um estilo de escrita árabe que ganhou destaque desde o início como uma escrita preferida para a transcrição do Alcorão e decoração arquitetónica, e desde então se tornou uma referência e um arquétipo para uma série de outras escritas árabes.
- Takbir é uma palavra em árabe que significa “louvor, exaltação, glorificação, magnificação, celebração”. No uso religioso, o takbīr refere-se à expressão da frase Allahu Akbar que traduzida para o português significa “Deus é Grande”.